Tsundoku ao chão!

 Quero esfacelar meus tsundokus, as colinas de livros empilhados pela casa, à espera de leitura e de seu sossego definitivo nas prateleiras, de onde podem até ser retirados para novas vistas d’olhos. Como  os japoneses têm essa palavra tão simpática e a guru da arrumação Marie Kondo, que, reza a lenda, não vê necessidade de guardar mais  do que umas parcas dezenas de livros em casa? Simplicidade, para muitos é ter apenas um carro, em vez de dois, nada além de 25 pares de sapatos. Para mim é dispensar tantos calçados – já fui páreo para Imelda Marcos, quase uma centopeia –, me desfazer de um carro que me serviu por 21 (!) anos e acumular apenas uns 2 mil livros.

Minha biblioteca já teve mais que o dobro desses volumes. Por falta de espaço para acomodar a todos e de saúde para ler os que estavam tomados por manchas de mofo e fungos que quase me levavam para o balão de oxigênio, fui me desfazendo de muitas duplicatas – quem gosta de livro guarda exemplares diversos do mesmo título por causa “da capa muito bem bolada”, do prefácio do especialista”, “do posfácio de amigo do autor” – e até de exemplares únicos que mereciam ser conhecidos por outros leitores. Nada disso faz diminuir o número que surge em todos os ambientes da casa. E, não, não vou botar tudo no Kindle. Quero livro mesmo, com capa e papel pra ser manuseado, sujo, usado, incorporado.

À minha espera, por alguns anos, estavam dois policiais – entre tantos outros. Depois que leio algo muito bom, que me causa impressão forte, preciso me enroscar com um policial, porque, mesmo quando não é uma leitura impressionante, sei que terei uma experiência agradável. Eu vinha da leitura de um texto inédito maravilhoso e de um impressionante romance recém-lançado, O caso Édipo (Ventania Editorial, R$ 42 ), de Luiz Antônio Aguiar, que faz Antígona exigir de Hades um novo julgamento para o pai.  Um livro que merece novas leituras e considerações, ao trazer uma nova visão – e bastante plausível – sobre os culpados pela tragédia de uma família, desfeita, reconstruída e destroçada pelo mesmo personagem, o  homem que mata o pai e se casa com a mãe.

Para minha surpresa, um dos velhos volumes intocados foi uma grata surpresa. Linda, como no caso do assassinato de Linda (Intrínseca, R$ 30), do sueco Leif GW Persson, tem mais de 400 páginas que se esgotam mais rapidamente do que o leitor gostaria. Além de escritor, Persson é um dos mais renomados criminalistas da Suécia, professor universitário e consultor do ministério da Justiça. O conhecimento empírico dos processos criminais garante à narrativa uma rara autenticidade.

Um crime que seria banal em países violentíssimos, como o Brasil, chama atenção de toda a imprensa e das autoridades de segurança do país. O corpo de uma policial novata de uma cidade de veraneio é encontrado com sinais de estrangulamento, estupro e tortura.   Para auxiliar a unidade da cidadezinha é destacada uma equipe da capital, coordenada pelo inspetor Evert Bäckström, a antítese do homem escandinavo que o mundo acredita existir. Bäckström é alcoólatra, machista, racista, falso e com escassos padrões de honestidade. Seu total desprezo pela humanidade é compensado pela capacidade de se cercar de um grupo de policiais dedicados, além de uma tremenda presença de espírito, sarcasmo e muita sorte: quase todos os crimes de grande repercussão em sua área foram desvendados por sua equipe. Detestável e fascinante, Bäckström é um personagem tão bem construído quanto o relato da lenta investigação que consome mais de dois meses, milhares de testes de DNA e entrevistas com boa parte da população da região. O único senão de ler Persson é descobrir que a única edição de um livro seu no Brasil é  Linda. Que venham outros!!!


17.10.2020

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