Quem mandou gostar de ler?

A mudança chegou um ano e meio atrás com 87 caixotes de livros. O resto – objetos da casa, panelas, CDs, DVDs, a preciosa coleção de sininhos herdada da madrinha –, a tranqueira de uma vida inteira, não somava 60 caixas. Uma semana depois que os caixotes quase se integraram à decoração do ambiente, as estantes com prateleiras livres, veio aquele momento temido por todo o dono de muitos livros, o da descoberta de que não há espaço para tantos volumes na casa nova, menor do que a anterior.

O problema não é sempre o das dimensões dos imóveis, mas do tamanho da biblioteca, que causa indignação em muitos visitantes, pessoas que aceitam a idiossincrasia de colecionar centenas de pares de sapatos, bolsas ou roupas, mas não mais do que 50 livros. A guru da arrumação Marie Kondo já se retratou de suas declarações sobre manter apenas 30 volumes em casa. Autora do best-seller “A mágica da arrumação” (Sextante, R$ 24,90), Depois de ter vendido mais de 5 milhões de cópias de seu manual do minimalismo doméstico, Kondo deixou de lado a pressão contra os amigos das traças, lembrando a importância de estarmos cercados pelo que nos deixa felizes.

Em mudança, é natural dispensar os livros impossíveis de manuseio ou de aspirar (fisicamente). Não cultivo o hábito de sorver o aroma do livro novo, costume bastante difundido entre leitores compulsivos. Ao abrir um volume amarelo e coberto de fungos, minha deficiente respiração de asmática absorve todos os alérgenos que aquele exemplar carrega, obrigando o combate da alergia com doses industriais de corticoides. Por isso, a mudança é pretexto para dispensar a coleção Clássicos do Bolor, ainda que doa na alma a separação daquela surrada brochura, esburacada e repleta de anotações do antigo proprietário sobre o texto lido.

Montadas as estantes, chumbadas as prateleiras, despedidas as miniestufas de ácaros, há que se decidir a organização da biblioteca, sem ligar para o incauto visitante que surgia (em tempos anteriores à pandemia), munido de três indagações:

  • Por que você não compra um Kindle, armazena bibliotecas do mundo inteiro lá e doa tudo para uma biblioteca comunitária?
  • Você já leu isso tudo que guarda aí?
  • Você quer me emprestar as obras completas de Lima Barreto?

A resposta se repete: não, não e não.

1)Não quero, pois

1.a) é impossível ler todas as bibliotecas do mundo numa só encarnação.

1.b) na mudança, doei 600 livros – a imensa maioria em bom estado – para bibliotecas  comunitárias.

2) Não, apenas uns 85%.

3) Não, ainda não li, ganhei há pouco tempo o box maravilhoso da Nova Fronteira (R$ 250 – esgotado) e não empresto livro virgem.

E aí acontece que o Lima Barreto, numa  caixa tão bonita, tem volumes acima do tamanho das outras obras de literatura brasileira…. Lima acaba indo para o lado da prateleira dos portugueses, porque adentraram  seis Saramagos oriundos de uma biblioteca de família desfeita. Próximo a eles está “Colégio de freiras” (Iluminuras, R$ 24,90), de Raimundo Carrero, que ficará perto de “A febre de notícias ao entardecer” (Aura com Livros, R$ 30,90), do meu primeiro editor, Pinheiro Júnior, que já devorei, mal apareceu aqui em casa. Pinheiro encadeia suas passagens por jornais cariocas nos anos 1960/70 com ficção, contando episódios reais de cobertura e edição das histórias que mais interessavam a leitores, então, como a ‘caçada’ ao bandido Cara de Cavalo, desmistificando lendas difundidas nas redações.  Por que Pinheiro, Carrero e Lima serão mantidos próximos? Ora, porque a seção de ficção brasileira é uma das que mais viaja entre as prateleiras, pois a todo momento há uma renovação de títulos – sejam lançamentos ou edições mais recentes, com estudos, introduções caprichadas etc.

Embora os thrillers tenham ganhado espaço VIP em meu quarto, espraiando-se por uma estante só para eles, está chegando o tempo de serem transferidos para outra, maior, onde hoje são as seções de “livros sobre livros”, estudos literários, comunicação/jornalismo, esportes, sociologia, religiões e lendas europeias, africanas e asiáticas. Por isso “A garota anônima” (Faro Editorial, R$ 34,90), suspense de Greer Hendricks e Sarah Pekkanen, que trata do envolvimento de uma jovem maquiadora no que ela pensa ser um experimento de uma psicóloga sobre ética na vida atual, permanecerá provisoriamente sobre a pilha que se amontoa em cima de minha mesa de trabalho, servindo de apoio informal para o mouse e meu braço, reduzindo a tendinite.

Em “A biblioteca, à noite” (Companhia das Letras, R$ 54,90), Alberto Manguel conta que, ao montar o que deveria ser a morada definitiva para seus 40 mil livros, no interior da França, imaginava “estantes que começassem à altura do quadril e subissem apenas até onde chegasse a ponta dos dedos” do braço estendido. Livros “condenados a alturas que pedem escadas ou a profundezas que obriguem o leitor a rastejar acabam por receber muito menos atenção que seus companheiros à meia altura, seja qual for seu assunto ou mérito”, afirma. Por falta de espaço para expandir horizontalmente as prateleiras, Manguel, que hoje é o presidente da Biblioteca Nacional da Argentina, teve que se contentar em empilhar livros até o teto. E, claro, encaixotar tudo outra vez na mudança da França para a Argentina. 


27.02.2021

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