A corda-bamba do racismo estrutural


 


O noticiário conta como um homem negro foi assassinado a pauladas e por asfixia, diante de sua mulher e de outros clientes de um supermercado em Porto Alegre. Gravado em vídeo pelos que não tinham a menor condição de intervir – seguranças impediam a aproximação de qualquer um que tentasse impedir a barbárie -, o episódio poderia estar em alguma página de Na corda bamba (Arqueiro, R$ 38,90), romance da norte-americana Kylie Reid, que aborda o racismo intrínseco na sociedade dos EUA.


No Brasil, país com a população mais miscigenada no mundo, os dilemas enfrentados pelos personagens do romance estão longe de provocar angústia. O leitor brasileiro facilmente se identifica com o desconforto permanente experimentado pelas protagonistas - Alix, uma blogueira/influencer branca de classe média alta e Emira, a babá de sua filha Briar. Convocada por Alix numa emergência, Emira sai de uma festa e vai com a garotinha ao mercadinho da esquina, onde discute com um segurança que pergunta se ela sequestrou a menina. Da situação partem diversos questionamentos sobre racismo e comportamento na sociedade contemporânea: a compensação financeira/moral que os empregadores acreditam dever à Emira, o apego genuíno da babá em relação à criança, a possibilidade de viralizar um vídeo da briga da jovem com o guarda – garantindo visibilidade e uma nova causa para Alix nas redes sociais, entre tantos outros.


As tentativas de integrar a babá ao círculo social do casal lembram o dramático Canção de Ninar (Tusquets, R$ 42,90), que deu o Goncourt em 2016 à franco-marroquina Leila Slimani. Inspirado por um caso real, o romance (sobre o assassinato de duas crianças pela babá em Paris) tem como subtexto o embaraço que a contratação de uma empregada traz ao casal de classe média. O mesmo acontece no feriado de Ação de Graças, Alix apresenta Emira às amigas como alguém que “já faz parte da família” – expressão mais do que recorrente nos lares brasileiros. O casal contrabalança afeto pela babá com a dependência de seu serviço para a manutenção da vida familiar e profissional nos trilhos. A comprovação do liberalismo dos patrões está em jamais exigirem uniforme de Emira, apenas lhe dão camisetas, com propaganda do blog de Alix, para que ela não suje a própria roupa ao brincar com Briar. Para o namorado de Emira, um branco que só tem envolvimentos amorosos com negras e cujos amigos são majoritariamente negros, o uniforme disfarçado reforça o escravismo do casal.


O título em português é mais feliz do que o original Such a fun age (‘uma idade tão engraçada’), que pode se referir tanto à pequena Briar quanto à Emira, de 25 anos. Adultos são os personagens brancos, na casa dos 30 anos, ou a amiga, negra, filha de um homem rico, que consegue um bom emprego graças aos contatos do pai. Emira vem de família pobre e se acomoda na função de babá, gastando o que recebe com aluguel, festas e roupas, sem ambição ou empenho para transformar sua vida profissional.


As reviravoltas bem calculadas da narrativa levaram Na corda bamba à primeira seleção de treze finalistas do Booker Prize 2020. Talvez o maniqueísmo e a rigidez estrutural na montagem podem ter reduzido as chances do prêmio, mas garantem um painel montado sobre as pequenas contradições que solidificam os preconceitos. Além da tradução do título, a edição brasileira acertou na belíssima capa criada pela aquarelista Mariana Sguilla – muito mais elaborada e cuidada do que a original.

20/11/2020

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