A distopia nossa de cada dia

 


Fiquei em casa, e, pela primeira vez, tentei cozinhar. Mas a peste não se manifestou em mim. Pelo telefone podia falar com quem quisesse e saber as notícias. (…) Um terço da população nova-iorquina estava morta.(…). um comunicado de Berlim atestava que um bacteriologista havia descoberto um soro para a epidemia. (…) Era tarde demais.”

A Praga Escarlate, Jack London

Na peça The Children’s Hour (no Brasil, Infâmia), de Lillian Hellman, duas professoras se trancam em casa depois de perderem a escola que dirigiam devido ao boato de que mantinham um relacionamento amoroso. Nos dias de solidão, uma delas comenta que obedece a horários para tornar qualquer atividade significativa, entre elas pentear os cabelos. A pandemia que assola o planeta exige a mudança na rotina e leva a busca de novos sentidos para o que se faz automaticamente. Além dos registros científicos, calamidades tradicionalmente inspiram abordagem literária.  Bom momento para verificar como populações sobreviveram em tempos de restrição, temor e tragédia.

A praga escarlate (Conrad, R$ 26), de Jack London, antecipa os cenários distópicos tão frequentes hoje na literatura infanto-juvenil. Lançada em 1912, a novela fala de uma doença misteriosa que acaba com a civilização 100 anos depois, sequência de diversas pandemias como a que surgiu, em 1984, “num país chamado Brasil e que matou milhões de pessoas”. A Morte Vermelha dizima a população mundial, então em 8 bilhões de pessoas.  O último sobrevivente da época, um professor imune ao vírus, conta aos netos, crianças violentas e iletradas, como as cidades eram abandonadas e os doentes se suicidavam ao perceber os sintomas.

Daniel Defoe escolheu o caminho inverso ao de Jack London. Um diário do ano da peste (Artes e ofícios, R$ 45) traz o fictício relato de uma testemunha ocular sobre o surto de peste bubônica, que causou 100 mil mortes em Londres, no verão de 1665. Defoe, considerado o criador do romance moderno, foi jornalista e homem de negócios (falido) antes de se dedicar à literatura, com mais de 60 anos. Era criança durante a epidemia, e pesquisou históricas verídicas para montar o livro, que abre lamentando a ausência de jornais de grande circulação na época em que a doença obrigou os londrinos a sacrificarem 40 mil cães e 20 mil gatos para conter a disseminação.

Um dos livros mais vendidos desde o início do coronavírus na Europa é A peste (Record, R$ 49,90), de Albert Camus. Lançado em 1947, visto por muitos críticos como uma alegoria para a França ocupada durante a dominação nazista na Segunda Guerra Mundial, o romance é conduzido pelo médico Rieux, que tropeça num rato morto na rua, numa manhã, em Orã, na Argélia. Como tantos outros, ele se arrisca a ser contaminado ao tratar dos doentes, sem tempo para refletir sobre as perdas pessoais. É um dos primeiros a advertir que metade da cidade corre o risco de morrer, enquanto autoridades hesitam em divulgar os números da doença, aproveitadores aumentam os preços de mercadorias e a população passa da apatia inicial para o desespero, confinados na cidade fechada a visitantes externos.

Uma reconstituição histórica do combate à epidemia de cólera, que matou 23 mil dos 2 milhões de habitantes de Londres, em 1854, está em O mapa fantasma (Zahar, R$  79,90), de Steven Johnson.  A narrativa parece um thriller mesclado a dados históricos, em linguagem jornalística, uma especialidade de Johnson, autor de diversos livros e textos sobre temas científicos.  A média de 500 mortes por dia levou cientistas a descobrirem como se transmitia a doença – pela água – e a iniciarem o saneamento da metrópole, com a construção de um sistema de abastecimento de água e outro de captação de esgotos.

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Que tenhamos fé, cautela e solidariedade para superar esses dias difíceis.

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Muitos dos livros aqui citados têm textos disponíveis na Internet ou por e-book em sites de vendas.


22/03/2020

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