Algumas leituras no ano da peste

 Nossa rotina mudou. E no primeiro ano de pandemia, quem pôde, leu. Uma seleção do que de melhor surgiu ou foi reeditado em 2020, está aqui. Começando por um dos títulos que voltou à voga, o mais procurado na Europa no início da pandemia:  “A Peste” (Record, 49,90), o clássico de Albert Camus, lançado em 1947, sobre uma epidemia que fecha a cidade de Orã, na Argélia. As autoridades hesitam em divulgar o número de mortos ou doentes, aproveitadores aumentam os preços das mercadorias, a população passa da apatia inicial para o desespero pelo confinamento. Parece familiar? Pois bem, “A Peste” previu o que viríamos a viver novamente.

  • “O escândalo do século” (Record, R$ 59,90) traz trabalhos impecáveis de reportagem assinadas por Gabriel Garcia Marquez, em diversos veículos, entre 1950 e 1986. O título do livro é o da série de crônicas escritas em 1950 sobre as investigações e processo pela morte de uma jovem em Roma, desnudando a impunidade das elites italianas.
  • “Mataram Marielle – Como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca”(Intrínseca, R$ 49), dos jornalistas Vera Araújo e Chico Otavio, um minucioso dossiê sobre a execução da vereadora e de seu motorista, em março de 2018, traz o passo a passo das investigações policiais e o registro do crescimento das milícias no Rio de Janeiro, onde cinco pessoas são assassinadas por dia. Em 2019, houve 41.635 homicídios no país, sendo 13% cometidos por policiais. Das vítimas, 75% eram negras.
  • O racismo institucionalizado está na autobiografia do comediante Trevor Noah, “Nascido no crime – Histórias de minha infância na África do Sul” (Verus, R$ 43,90). Filho um branco e uma negra, Noah conheceu desde menino a clandestinidade. Extremamente irônico, Trevor descreve a pobreza, o desinteresse do Estado e uma incessante busca de qualidade de vida por quem não se conforma em apenas sobreviver numa sociedade altamente discriminatória.
  • “Na corda bamba” (Arqueiro, R$ 38,90), título brasileiro para “Such a fun age” (Uma idade tão peculiar – tradução livre), romance da estreante, a norte-americana Kiley Reid, finalista do Booker Prize, trata principalmente do desconforto experimentado por Alix, uma influencer branca de classe média e Emira, a babá de sua filha Briar. Numa noite em que Emira vai com Briar ao mercadinho da esquina, sua briga com o segurança do estabelecimento, que a confunde com uma sequestradora de crianças, é filmada em vídeo. Da situação partem diversos questionamentos sobre racismo e comportamento na sociedade contemporânea: a compensação financeira/moral que os empregadores acreditam dever à Emira, a possibilidade de viralizar um vídeo da briga da jovem com o guarda – garantindo visibilidade e uma nova causa para Alix nas redes sociais, entre tantos outros.
  • Não falta segregacionismo também em “Nada ortodoxa – Uma história de renúncia à religião” (Intrínseca, R$ 44,90), a autobiografia de Deborah Feldman, que deixou sua comunidade judaica tradicionalista hassídica, no Brooklyn, em Nova York, insatisfeita com o isolamento social. O relato ‘vira-página’ hipnotizante conta do parco conhecimento de Deborah, criada pelos avós, sobre a “vida lá fora” e sua decisão de abandonar o marido com quem foi casada, adolescente, para criar sozinha o filho do casal em Berlim.
  • “Pátria” (Intrínseca, R$ 64,90), de Fernando Aramburu, discute o conceito de Nação no País Basco e as perdas que guerras civis pelo domínio territorial acarretam. Duas famílias rompem a amizade de uma vida inteira quando o dono de uma empresa de transportes de porte médio é marcado para morrer pelo ETA – o movimento separatista basco. Sem tomar partido de nenhum dos lados, Aramburu tece uma delicadíssima teia na qual se equilibram nove personagens, entre eles a viúva do empresário e a ex-melhor amiga, que se converte à causa separatista à medida que o filho se envolve com o grupo.
  • O pertencimento é discutido pelo italiano Marco Balzano em “Daqui não saio” (Bertrand Brasil, R$ 39,90), finalista, em 2018, do Strega, o maior prêmio literário de seu país. Em 1921, os moradores do povoado de Curon, originalmente pertencente à Áustria, mas anexado à Itália, têm que deixar de se comunicar em alemão e passam a falar italiano.  Em 1950, a vila foi inundada para a construção de uma represa, sob protestos dos moradores, que perderam a nacionalidade, a língua, a cidade, da qual hoje só se vê o campanário de uma igreja, no meio do imenso Lago de Resia.
  • Comemorando 50 anos de lançamento no Brasil, “A mística feminina” (Rosa dos Tempos, R$ 41,90) ganhou nova edição. O estudo da americana Betty Friedan aborda questões ainda existentes, como a discrepância salarial entre homens e mulheres, e a guerra doméstica pela divisão de tarefas “que qualquer criança com mais de oito anos é capaz de fazer” – entre elas usar uma máquina de lavar roupas.
  • Já a contestação à submissão pelas mulheres é um dos temas da escritora Elena Ferrante, em “A vida mentirosa dos adultos” (Intrínseca, R$ 43,90). Personagens multifacetados – e pouco simpáticos – circulam por diferentes pontos e ciclos sociais na Nápoles do fim do século XX, a partir do momento em que a narradora, a adolescente Giovanna, aos doze anos, decide conhecer uma tia. É quando a menina se depara com um novo universo, que pode incorporar a seu cotidiano de classe média alta, percebendo o quanto a vida “dos adultos”se ampara em omissões e mentiras.
  • Tratando as vidas pequenas, do cotidiano de nossa gente, os deliciosos contos reunidos em “Rua de Dentro” (Record, R$ 39,90), de Marcelo Moutinho, nserem o leitor na rotina da simplicidade de uma megalópole, que esconde seus preconceitos e dores sob a imagem de sofisticação cosmopolita impregnada em todos os seus habitantes – até os mais humildes. Camelôs, a moça paga para empunhar a bandeira de um partido político, em campanha pré-eleição, embora não tenha qualquer identificação ideológica, costureiras, porteiros compõem o imenso mosaico humano que dão vida à cidade.
  • A jornalista Tania Camargo Celidônio recompõe a trajetória de sua família materna em “Ela, eles e todos nós” (Editora do Autor, R$ 25), juntando textos que sua mãe, Marina Camargo Celidônio, bibliotecária e tradutora, escreveu sobre suas origens. Essa surpreendente saga de combate a fantasmas interiores, entre eles, o de problemas mentais em épocas que os males das almas eram escondidos da sociedade, trata com delicadeza a crueldade da vida.
  • “No fundo do oceano os animais invisíveis” (Reformatório, R$ 50), de Anita Deak, conta o percurso de Pedro, um filho de fazendeiro, de estudante a militante contra a ditadura brasileira, no Araguaia. Mas não é só isso. Se a narrativa se embrenha em lembranças que afloram pelos sentimentos que o protagonista apresenta, a riqueza de um vocabulário esquecido – e até pouco conhecido – domina o texto irresistível, atravessando épocas e diferentes ambientes, oscilando entre o real e o fantástico no universo de cada um.
  • Em 1990, Rosa Amanda Strausz ganhou o Jabuti na categoria contos, por seu livro de estreia, “Mínimo múltiplo comum”. Uma nova edição, acrescida de textos publicados em outras ocasiões, comemora os trinta anos de vida literária da autora. “Mínimo do mínimo *mais alguns contos de nariz sutil” (Ventania Editorial, R$ 38) tem textos curtinhos e outros maiores, que guardam uma peculiaridade: todos levam o leitor a reflexões imediatas sobre desejos, fantasias, tristezas pequeninas que guardamos num cantinho do peito. Misturando sarcasmo com encantamento, cada pequena história é uma narrativa que bate na alma, sem jamais perder a ternura. Poético, doce, amargo, intenso como a vida.






* Este título é referência direta a “Um diário do ano da peste” (Artes e Ofícios, R$ 45), de Daniel Defoe, sobre o surto de peste bubônica de 1665, que matou 100 mil pessoas, em Londres. Defoe, criança na época, foi um dos sobreviventes. Recolheu histórias verídicas para reproduzir a angústia que conheceu na infância. O resultado está no belo “Diário”.


15.01.2021

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