Cartas dos invisíveis

 No fim dos anos 1950, o jornalista Audálio Dantas escreveu um artigo sobre a catadora de papel Carolina de Jesus, que registrava, com redação ortograficamente confusa, mas admiravelmente precisa, a vida com seus filhos na favela do Canindé, às margens do Rio Tietê, em São Paulo. Editado por Dantas, o diário foi publicado e se tornou o best-seller Quarto de despejo (Ática, R$ 43,90). Mais de 60 anos depois, a realidade de muitas famílias brasileiras, ainda lutando para sobreviver numa acachapante desigualdade social,  é semelhante à de Carolina e seus filhos. E também a de outros pobres encarados apenas como serviçais nas sociedades eurocêntricas ocidentais.

Em 1962,  a antilhana Françoise Ega, que havia emigrado para a França, leu a história de Carolina numa revista. Nascia então Cartas a uma negra (Todavia, R$ 59,90) um diário epistolar em que Françoise descreve seu cotidiano como empregada doméstica em Marselha, onde vivia então.Na época, diversos nascidos em ex-colônias francesas começavam a chegar ao país. Embora Françoise Ega tivesse feito Ensino Médio e um curso de secretariado, não conseguia emprego de secretária. Decidium fazer faxinas para complementar a renda da família, no horário em que os cinco  filhos estavam no colégio.

Mam’ega, como ficou conhecida mais tarde, começa a escrever as cartas à Carolina, sabendo que dificilmente elas chegariam à sua inspiradora. Nelas, fala sobre as imigrantes tratadas com indiferença por patroas que exigiam o cumprimento de tarefas cansativas e despropositadas, como de descer e subir escadas carregando baldes d’água – havia água encanada nos apartamentos – ou batendo tapetes em áreas que acabavam de ser limpas. Para Françoise Ega, todas as exigências descabidas das patroas eram tentativas de humilhar as empregadas e entronizar no território francês a prática escravagista, consagrando diferenças culturais e de classe.

Ao se insurgir contra a hostilidade e o desprezo dos empregadores, Mam’ega se torna uma liderança no grupo de antilhanos, criando organizações trabalhistas e ajudando os imigrantes a legalizarem a permanência no país, além de buscar integrá-los socialmente, com atividades esportivas e culturais em centros de atendimento público.  A  recusa da invisibilidade de Françoise Ega encontrou resistência até do marido, que não entendia sua necessidade de firmar-se também na área literária. Publicou dois livros em vida, um romance e um de poesias. Cartas a uma negra só foi lançado em 1978, depois que tanto Françoise quanto Carolina já haviam morrido.

Correio noturno (Tabla, R$ 44,20), da libanesa Hoda Barakat, também trata em forma epistolar o estranhamento de um universo de excluídos no Ocidente, os refugiados, desta vez, árabes, mas no campo ficcional. Seis personagens distintos e com histórias bem diferentes se identificam ao encontrarem as cartas de desconhecidos, em ambientes comuns.

A primeira carta, de um imigrante ilegal para sua namorada, é lida pela mulher madura que tem um encontro marcado com um ex-amor da juventude. A carta da mulher vai chegar às mãos de um homem com passado criminoso, que escreve para a própria mãe, e tem as folhas descobertas por uma aeromoça dentro do avião onde ele viajou. As trajetórias de cada um são narradas pelos outros, que mencionam as cartas encontradas ao falarem sobre a solidão, o temor de perder a liberdade, o abuso sexual sofrido pelas mulheres sob grupos muçulmanos, a saudade e, principalmente, a falta de pertencimento no exílio forçado por questões religiosas, econômicas ou políticas.  A delicadeza do entremeio das histórias rendeu a Hoda Barakat, que já havia recebido a Medalha Naguib Marhfouz de Literatura em 2000,  o prêmio internacional por Ficção Árabe, em 2019.

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