Histórias de delícias

 Uma boa maneira de entender outras culturas é conhecer sua culinária. Ao longo deste período distópico de tantas incertezas, nada como se aprofundar no escapismo gastronômico. Afinal, viajar para entender a vida em outros cantos ainda é sonho distante...


Um nicho dentro dos livros de gastronomia é a história de povos contada por seus hábitos alimentares. Como o pretexto histórico para os europeus embarcarem em caravelas em busca das terras onde havia especiarias, nada mais  natural do que refletir sobre a ocupação territorial através da excelência culinária. Um olhar que permite compreender a formação social no Brasil mostrado em Delícias do descobrimento – A gastronomia brasileira no século XVI (Zahar, R$  46,90), de Sheila Moura Hue, Ângelo Augusto dos Santos e Ronaldo Menegaz. Os europeus, valorizando sempre o que vinha do Velho Mundo – como hoje fazem seus descendentes aqui -, estranharam  animais e frutos jamais imaginados, entre eles antas e abacaxis. O abacaxi foi um dos que teve quase imediata aceitação, incorporado rapidamente à flora de outras colônias portuguesas, por características distantes da doçura de seu sabor. As cascas eram aproveitadas para tirar manchas de ferrugem de roupas e armas, enquanto suas propriedades diuréticas e depurativas faziam do fruto um medicamento eficiente para as mais diversas intoxicações alimentares.


Sem tanta história, mas com esclarecimentos básicos para qualquer viajante, O atlas gastronômico – Uma volta ao mundo em 40 cozinhas (Casa da Palavra, R$ 50), da jornalista inglesa Mina Holland, elege os pratos mais apreciados em quatro continentes. A maioria das receitas é europeia, com destaque para a culinária da França, Espanha e Itália, uma inexplicável deferência aos Estados Unidos (seis páginas com comida cajun e californiana), e o absoluto desprezo pela cozinha cubana, guatemalteca ou de qualquer país da América Central. Entre os latino-americanos, estão apenas Peru, México, Brasil e Argentina. Há louvor absoluto pelo bobó de camarão e, claro, a feijoada, além das musses de chocolate. A principal qualidade do livro é que Mina não trata o leitor como um chef de cozinha, ensinando didaticamente o preparo dos mais simples pratos, como o cuscuz marroquino e o guacamole mexicano.  







Delizia! A história dos italianos e sua comida (Companhia Editora Nacional, R$ 33 ), de John Dickie, é comedido em receitas, mas visita a culinária da Idade Média, da Renascença, o culto ao pão incentivado pelos fascistas (a Itália, em guerra, padecia da fome como a Europa inteira) até a glorificação da Dieta Mediterrânea, em fins do século XX. Professor de Estudos Italianos no University College of London, Dickie se debruça mais sobre a história e a utilização do que se cozinhava em outras terras pelos habitantes de o pastiche que resultou no que hoje se conhece como cozinha da Itália. Certo é que bem antes de Mussolini, os povos da Itália já tinham o hábito de acrescentar pão a qualquer prato, garantindo assim, calorias preciosas em tempos de carestia.


Ressaltada por Vinícius de Moraes em verso e música, (Conta ponto saber fazer coisinhas/Ovos mexidos, camarões, sopinhas (...) comidinhas para depois do amor*), o erotismo culinário é um campo de desenvolvimento pontual e discreto. Receitas afrodisíacas ou que contemplam o relaxamento sensual pontuam Duas bocas – Histórias de comida e sexo (Nova Fronteira, R$ 20). Sob o pseudônimo Fugu – nome japonês do venenoso baiacu, que deve ser preparado mantendo um pouco de seu veneno, na medida certa “para inebriar sem matar”), a autora desfia sua vida amorosa, relacionando-a a “comidas de alcova”, “sempre leves, mais entradas do que pratos completos”. Erótico, sim, dedilhando o pornográfico com requinte, um livro de dar água na boca.


11/09/2020

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