O confinamento está lá fora

 A pandemia chega a qualquer um. Inesperadamente, precocemente, tardiamente, diretamente ou não. Mas chega. Até quem entrou em isolamento antes das recomendações da Organização Mundial de Saúde pode ser contaminado. Nesse exílio para escapar do inimigo invisível e não cair em depressão diante do número de casos que cresce assustadoramente, uma saída seria “pôr a leitura em dia”.  Um bom momento para refletir a respeito da  dureza da vida e dos limites da liberdade de ir e vir, pois, por vezes, o confinamento está lá fora.

Um deles seria o thriller Terra americana (Intrínseca, R$  49,90), que entrou no clube do livro de Oprah Winphrey. Com potencial para se transformar num best-seller respeitável no mercado internacional, o romance sofreu uma enxurrada de críticas de escritores mexicanos. A pandemia  serviu para sepultar a polêmica  – e até justificar o cancelamento da viagem promocional do livro. Jeanine Cummins, a autora, defendeu-se das acusações de estereotipar os mexicanos, contando ter visitado centros de apoio a refugiados nos Estados Unidos, onde vive, o que não aplacou seus críticos.

Cummins, cuja família é de Porto Rico, já havia lançado dois livros – um deles  autobiográfico – com vendas razoáveis. Terra americana (título original American dirt – sujeira americana) irritou os mexicanos pela inconsistência ingênua da protagonista, a dona de uma livraria em Acapulco, casada com um jornalista que desenvolve paixão platônica por um frequentador de sua loja. Quando perde toda a família, exceto o filho, numa chacina, ela já havia deixado de lado o enlevo pelo cliente, que descobre ser um perigosíssimo narcotraficante. Decide, então, seguir para os Estados Unidos com o filho, atravessando a fronteira a pé.

Pelo ritmo, o thriller conquistou admiradores célebres, como os escritores John Grisham e Stephen King, além de haver boatos sobre sua adaptação cinematográfica. A inconsistência de alguns personagens e a tremenda inocência da protagonista, além do emprego desnecessário de palavras em espanhol intercalando o texto (hijoDios, madre) em inglês, são alguns dos pontos que podem vir a irritar o leitor.  Ao longo do trajeto, mãe e filho encontram quem quer sair do México por falta de meios de subsistência. Os Estados Unidos são apresentados como o Eldorado da liberdade e prosperidade.

O Eldorado para a jovem Ladydi, protagonista de Reze pelas mulheres roubadas  (Rocco, R$ 39,90), fica em Acapulco, a maior cidade que ela, moradora de um vilarejo na região de Guerrero, conhece. Em seu povoado, as meninas são vestidas como meninos e maquiadas, na puberdade, para parecerem feias, a fim de não atrair o olhar dos traficantes, que sequestram as bonitas para prostituí-las. Uma das maneiras de escapar desse destino é esconder-se em buracos nos quintais  quando escutam o som dos motores das caminhonetes de luxo usadas pelo tráfico.

Radicada no México desde a infância, a escritora Jennifer Clement pensou em tomar o relato de diversas vítimas do tráfico para um ensaio sobre  violência a que as mulheres são submetidas no país. Depois de uma década recolhendo depoimentos, já reconhecida como poeta e romancista dedicada a causas sociais, optou por usá-los na saga de Ladydi, de sua amargurada mãe e das mulheres cujos sonhos de ascensão social jamais se cumprem, mesmo quando se submetem a sevícias – personagens que acreditam que o melhor a  “fazer no México  é ser uma menina feia”.

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Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza morreram na mesma semana – de outras causas que não a Covid-19. Quem sabe poderiam bem aproveitar esse isolamento para novos thrillers mostrando o absurdo da violência num país de desigualdades sociais assustadoras como o Brasil?


18/04/2020

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