Sem perder a ternura jamais

 Em tempos de #MeToo, a campanha contra o assédio sexual, o thriller Rede de sussurros (Intrínseca, R$  49,90), da norte-americana Chandler Baker, trata da questão com uma narrativa tão dúbia quanto os acalorados debates sobre a validade das exigências feministas. Apesar do uso  da primeira pessoa do plural para descrever  os cuidados de  três advogadas bem-sucedidas em se mostrarem “tão profissionais quanto os homens”, a autora não deixa de lado as desconfianças da sociedade em relação a motivos ocultos de suas personagens quando acusam um chefe de assédio.


Chandler Baker  se inspirou em sua experiência de advogada jovem num escritório repleto de homens de meia idade prontos a se insinuarem para ela. As “brincadeiras” maliciosas, respondidas com sorrisos,  e a recusa em prestar queixa ao departamento de Recursos Humanos da banca, evitavam  que tivesse seu nome queimado no mercado.  Já suas personagens tentam apagar a feminilidade “na medida certa” para compensar a desvantagem de ser mulher no ambiente de trabalho. Elas fingem concordar que “o interesse por maquiagem, romance e Real Housewives  era realmente mais fútil do que uma obsessão por esportes, cerveja artesanal e videogames”.  Apontar assédios, dizem, “seria o mesmo que admitir que o fato de sermos mulheres importava”.

A maior parte das mulheres que trabalha “fora” sofre as mesmas pressões que as três protagonistas. Estas se consideram fortalecidas fisicamente por enfrentar  a dor ao dar à luz, fazer depilação, calçar sapatos que deformam a planta dos pés, aplicar botox na testa, furar orelhas, colocar silicone nos seios, “todos esses pequenos sacrifícios para parecer mais esbeltas e elegantes, (…) tudo isso endurecia nosso couro, afiava nossas garras”. A decisão de denunciar o chefe por seus repetidos assédios a subordinadas  impedirá que ele conquiste a presidência da firma, cargo almejado por uma das advogadas – que, no início da carreira, envolveu-se num caso com o acusado, um duplo motivo para desconfiar das reais intenções  das três mulheres.

Se a narrativa segue a construção consagrada pela novela policial contemporânea – desalinhamento cronológico, flashbacks desvendando a complexidade das personagens e da trama, além de depoimentos/entrevistas à Justiça, Polícia, imprensa – , o toque diferencial está nas protagonistas multifacetadas, sem atitudes lineares ou qualquer demonstração de inocência. Os homens não exercem apenas a vilania, embora os maridos das advogadas nem estejam na categoria de príncipes encantados. Eles aparecem na trama em segundo plano, assim como os filhos, crianças longe da perfeição alardeada pelos cultores da maternidade.  As mulheres amam seus filhos, porém guardam as demonstrações de ternura do público.

Homens, geralmente comedidos ao expressar ternura, não se acanham em alardear suas paixões por animais. Escritores, em particular, têm apreço por gatos, os bichos de estimação que mais frequentam livrarias e bibliotecas em todo o mundo, em contar traças e ácaros, claro. Ernest Hemingway gostava de se cercar por gatinhos, que considerava emocionalmente honestos: “Por uma razão ou outra, os seres humanos podem esconder seus sentimentos, mas os gatos, nunca”, dizia. Em sua casa na Flórida, hoje um museu, vivem 60 gatos.

Felinos também encantavam William Burroughs, um dos mais anticonvencionais dos escritores beats, que reuniu suas impressões  em O gato por dentro (LP&M, R$ 10,80). Nos textos curtos, Burroughs, que encarnou como  poucos a figura de escritor maldito,  –  homossexual de família burguesa, cursou Harvard, foi dependente e traficante de drogas, passou por diversas internações para desintoxicar-se e matou sua mulher, acidentalmente, com um tiro – revela uma pouca conhecida doçura. Para ele, ao não “oferecer serviços”, o gato mostra que espera carinho e abrigo: “O amor não é de graça. Como todas as criaturas puras, os gatos são pragmáticos”.





22/02/2020

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