A sobrevivência à margem da lei

 Na periferia,  mesmo não sendo um criminoso de verdade, o crime estava na sua vida de alguma forma. (…)  A periferia me fez perceber que o crime prevalece porque faz a única coisa que o governo não faz: o crime cuida dos seus. (…) O crime cuida dos jovens que precisam de apoio e uma mão amiga. (…) O crime se envolve com a comunidade. O crime não discrimina.








A observação, que  poderia ser de um morador de favela brasileira, vem assinada pelo comediante Trevor Noah, apresentador do programa The Daily Show, na televisão norte-americana. A fascinante autobiografia Nascido no crime – Histórias de minha infância na Ágrica do Sul (Verus, R$ 43,90)  trata da vida de Noah antes da fama, das dificuldades sociais enfrentadas na infância e adolescência como cidadão mestiço na África do Sul, durante e depois da queda do apartheid. Uma rotina marcada por escamotear verdades, driblar entraves e fugir da violência.

O pai e a mãe jamais viveram juntos, o que era proibido pela legislação segregacionista. Registrado apenas no nome da mãe, Patrícia, uma descendente de xhosas, por muito tempo, todas visitas ao pai, o suíço Robert, eram às escondidas. Crescendo como único menino nem branco nem negro entre os colegas das escolas particulares onde a mãe insistiu em que estudasse, Trevor era mantido trancado em casa para evitar denúncias de vizinhos espiões sobre sua ascendência. Se descoberto, poderia ser levado para um orfanato destinado às crianças mestiças, nascidas à margem da lei,  e jamais voltar a ter contato com a família.

Desde cedo, Trevor aprendeu todos os idiomas usados em sua região – o xhosa, o africanêr, o sotho, o zulu, além de inglês. Era o que lhe permitia circular entre os diferentes grupos de etnias e, na adolescência, a transformar-se no fornecedor de cópias piratas de videogames, filmes e CDs. Mais tarde, torna-se DJ em festas para todos os públicos – brancos ricos, brancos e negros de classe média, negros muito pobres.

Para o leitor brasileiro, a vida dos Noah em pouco difere das leituras de páginas de jornais daqui. Privilegiando a ironia no lugar do vitimismo, Trevor descreve a pobreza, o desinteresse do Estado e uma incessante busca de qualidade de vida por quem não se conforma em apenas sobreviver numa sociedade altamente discriminatória. O machismo é apenas um dos elementos comuns aos dois países. Agredida constantemente pelo marido, Patrícia Noah procurou ajuda policial, sem sucesso.  Suas queixas eram consideradas “coisas de casal” pelos policiais. Preso em flagrante depois de alvejar Patrícia – que sobreviveu – a tiros, o padrasto de Trevor não tinha qualquer antecedente criminal registrado. Processado por tentativa de homicídio,  cumpriu pena em liberdade, como réu primário.

À parte as injustiças institucionalizadas na vida sul-africana, não faltam aspectos divertidos – e bastante familiares aos brasileiros. Além de falar da confusa formação da África do Sul, juntando no mesmo território povos de diferentes nações a  brancos holandeses e ingleses, a narrativa dá destaque ao sincretismo religioso. Tirando Patrícia, uma cristã convicta e devota, a avó de Trevor, como quase toda a população negra do país, aliava o cristianismo às crenças tradicionais xhosa. Uma característica malvista pelos brancos, mas incorporada a todos os grupos sociais no Brasil.

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Mais de um milhão de pessoas assinaram a petição para encaminhamento à Câmara dos Deputados pela manutenção da isenção de tributos sobre os livros, em vigor desde 1956, por iniciativa do escritor Jorge Amado, então deputado constituinte pelo PCB.  Há uma proposta governamental de taxas em 12% as vendas dos livros no Brasil, o que encarecerá o preço do produto, prejudicando ainda mais um setor em constante crise.

Para assinar e saber mais sobre o projeto do governo, entre em aqui.

#denfendaoolivro


05/09/2020

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