Reflexões sobre a terceira onda da praga

Fiquei em casa, e, pela primeira vez, tentei cozinhar. Mas a peste não se manifestou em mim. Pelo telefone podia falar com quem quisesse e saber as notícias. (…) Um terço da população nova-iorquina estava morta.(…). Um comunicado de Berlim atestava que um bacteriologista havia descoberto um soro para a epidemia. (…) Era tarde demais.”

“A Praga Escarlate”, Jack London

Um ano atrás, esta coluna tratava de livros sobre pestes históricas com um toque fictício. Estimava-se que em três meses tudo se acabaria. Depois, disseram os cientistas, seriam três meses adiante. Veio a vacina. As mortes e internações recuaram, depois voltaram a aumentar. No Brasil, a catástrofe é de proporções bíblicas.

Ler é a fuga para tantos, mas reflexão para outros – e por isso vale a pena refletir com essas leituras. Porque não há solução milagrosa, parece. Melhor é ficar em casa, quem puder. E aguardar pacientemente. Tantos poderão ser como o protagonista da curta novela de Jack London, que sobrevive à pandemia por ter imunidade natural ao vírus. Os outros sobreviventes, na maioria, são os mais fortes da espécie.) Geralmente, também, os menos instruídos.

Lançada em 1916, “A praga escarlate” (Conrad, R$ 26)  fala de uma doença misteriosa que acaba com a civilização 100 anos depois, sequência de diversas pandemias como surgida, em 1984, “num país chamado Brasil e que matou milhões de pessoas”. A Morte Vermelha aniquila dois terços da população mundial.  Sobrevivente da época, o velho professor imune ao vírus conta aos netos, crianças violentas e iletradas, como as cidades eram abandonadas e os doentes se suicidavam ao perceber os sintomas. A força bruta torna-se mais necessária do que o conhecimento e, além de tomar vidas, a doença empobrece as estruturas de linguagem. Os jovens não sabem ler e se expressam com um vocabulário tosco. Uma bela metáfora para tempos que parecem estar sempre prestes a chegar.

“Um diário do ano da peste” (Artes e ofícios, R$ 45), de Daniel Defoe, traz o fictício relato de uma testemunha ocular sobre o surto de peste bubônica, que causou 100 mil mortes em Londres, no verão de 1665. Defoe, que era criança durante a epidemia, pesquisou históricas verídicas para montar o livro. Na abertura, ele lamenta a ausência de jornais de grande circulação na época em que a doença obrigou os londrinos a sacrificarem 40 mil cães e 20 mil gatos para conter a disseminação.

Um dos títulos mais vendidos desde o início da pandemia na Europa é “A peste” (BestBolso, R$ 20,90), de Albert Camus. Publicado em 1947, visto por muitos críticos como uma alegoria para a França ocupada durante a dominação nazista na Segunda Guerra Mundial, o romance é conduzido pelo médico Rieux, que tropeça num rato morto numa rua em Orã, na Argélia. É um dos primeiros a advertir que metade da população corre o risco de morrer, enquanto autoridades hesitam em divulgar os números da doença, aproveitadores aumentam os preços de mercadorias e a população passa da apatia inicial para o desespero, confinados na cidade fechada a visitantes externos. Algo que se testemunhou no início da pandemia de covid-19.

Mais um clássico ganha requintada edição, ricamente ilustrada por Ralph Steadman, com duas apresentações do autor, George Orwell. Lançada em 1945, um mês antes do fim da Segunda Guerra Mundial, “A Revolução dos Bichos” (Intrínseca, R$ 59,90) é uma fábula em que os animais expulsam o fazendeiro que os explorava e passam a negociar a produção de uma granja com outros humanos. Os porcos lideram o grupo e passam a dominar as outras espécies, obrigadas a trabalhar até mais do que na época do fazendeiro. As movimentações políticas para a manutenção no poder leva os porcos, no fim, a se unirem aos homens. E, depois de aprenderem a ler e escrever, começam a andar sobre duas patas.

A alegoria contra o totalitarismo, combatida arduamente pelo socialista Orwell, que lutou ao lado dos anarquistas na Guerra Civil Espanhola e se desiludiu com a política stalinista na União Soviética, é apresentada da forma mais simples que o autor, conhecido pelas construções linguísticas complexas, propositalmente montou. Uma leitura que, infelizmente, não perdeu a atualidade 76 anos depois de sua publicação. Afinal, ainda hoje, como dizia Orwell, “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros”.

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#fiqueemcasa 


27.03.2021

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