Despedida carnavalesca

 Carnaval já foi época em que duas atividades sagradas das férias – ir à praia e reler o maior número de novelas policiais  – eram deixadas de lado por esta leitora, que se entregava à folia – e, nos intervalos entre blocos e bailes, ao sono.  Mudamos, tanto o  Carnaval quanto  eu. Vou me esfalfar, lendo alguma coisa, sim, mas, principalmente, desmanchando parte da biblioteca doméstica, premida pela falta de espaço e pelo avanço dos fungos em tantos volumes.

Não é fácil o desapego, mesmo na quarta vez em que me despeço de tantos livros que estiveram ao meu lado por seis décadas. Desta vez, o critério inicial, que levou à doação de cerca de vinte caixotes, somando em torno de 300 volumes, era o esplendor da vida animal nas páginas. Cheguei a uma etapa da existência em que  não desafio as alergias. Lá se foram edições octogenárias de romances lidos e relidos insistentemente, apesar dos espirros, lágrimas, crises de asma e conjuntivite.  O organismo, cansado,  não suporta mais tanta batalha. O segundo quesito seguia um princípio básico: mais de quatro anos sem tocar, adeus. Por isso me despedi do Em busca do tempo perdido, cuja leitura estava programada para minha aposentadoria – algo que só deve acontecer em dez anos, quando terei comprado outras edições, sem tantos furinhos e bichinhos circulantes. Guardei apenas um Caminho de Guermantes, edição de 1956, com versinho brega de dedicatória de meu pai, paquerando minha mãe. (Três anos depois estavam casados).

Livros mais “moços” foram impiedosamente enviados ao exílio, como uma das primeiras edições de Cem anos de solidão, que dividia o espaço com outra, comemorativa pelos cinquentenário de lançamento de um dos mais tocantes trabalhos de Gabo. Outros, substituem velhos volumes. Foi o caso de Alexandre e outros heróis, cuja antiga edição, páginas despencando, está no caixote, pronto para deixar a casa, enquanto entra um novinho (Record, R$ 49,90). Nas estantes sempre será inegável o domínio dos clássicos, ainda que com novas vestimentas, como o belo Mulherzinhas (Record, R$ 49,90), abraçado pelo apelo de outra montagem cinematográfica, enquanto parte para o desconhecido uma edição toda estropiada.

A tarefa é árdua na hora de confrontar contistas prolíficos, que salpicaram seus escritos vida afora. O caso do Tchecov é emblemático. A todo momento sai uma “edição definitiva” de alguns de seus contos. Em 44 anos de vida, ele escreveu peças geniais, novelas e 233 contos, que são selecionados por diferentes editoras para coletâneas, como convêm a obras de domínio público. Aí, tenho a pachorra de conferir, em cada um dos três volumes à mão, quais repetem os contos. Todos entre si, concluo, porém  sempre com histórias diferentes também. Então, o Tchecov todo amarelado, de 1959, fica, sim.

Daqui a pouco terei o mesmo problema com o Somerset Maugham.  Com o Stefan Zweig, já desisti: fica tudo mesmo, espalhado em três diferentes publicações. E vou consultar as seletas de contos variados, do mundo inteiro, para verificar quais estão repetidos, sem me desfazer de nenhum.

Sim, é difícil deixar de lado tantos companheiros. Consegui com os policiais, hoje reduzidos a apenas 130 volumes. Claro que em breve chegarão outros. Claro que a falta de espaço será resolvida com mais estantes e prateleiras instaladas em todos os cômodos da casa. Só bibliófagos, aqueles que destroem ou roem livros, não passam pelo drama dos bibliófilos, os que fazem dos livros objetos de louvor. E, sim, tudo seria mais fácil se incorporasse a biblioteca inteira no e-reader. E como fica o prazer de dificultar a vida, ora?

Evoé, Momo! O ano começa em duas semanas!!! Boa folia!

22.02.2020

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