Leituras de um janeiro pandêmico

O primeiro mês do resto de nossas vidas chega ao fim com auspiciosas notícias sobre vacinação em massa dos habitantes da Terra, misturadas à sensação de surpresa por surgirem mutações do vírus que parou o planeta. Sem planos para o futuro, integrando grupo de risco por idade e comorbidades, sou dos privilegiados que podem o trabalhar em casa e garantir o pagamento de continhas. E ler, mais do que assistir a filmes e séries, porque a labuta me impede de tantos deleites.

Há doze anos mantenho um registro do que leio, e neste janeiro pandêmico, até agora, foram 13 livros lidos – só um de não ficção, e, mesmo assim, a trabalho. Aqui estão apenas  os que me encantaram.

Assumo que me apaixonei pelas aventuras do inspetor Montalbano, o personagem criado pelo lamentavelmente falecido Andrea Camilleri. Meu hobby é catar títulos em sebos virtuais. Este mês, consegui Lua de papelExcursão a Tíndari e Guinada na vida (Record, preços entre R$ 45 e R$ 60), deliciosos títulos que fizeram parte na lamentavelmente finada Coleção Negra. Salvo Montalbano, o policial que tem paixão por literatura e gastronomia, honesto como toda a sua equipe, sabe esquivar-se da corrupção política e as propostas da Máfia siciliana. Com muito humor, Camilleri apresenta a sociedade italiana e todas as suas contradições e falcatruas institucionalizadas – pontos com os quais o leitor brasileiro facilmente se identifica.

Uma surpresa saborosa, em diversos sentidos foi O caderno de receitas de meu pai (Bertrand, R$ 32), primeiro romance do jornalista especializado em gastronomia, Jacky Durand, que trata da delicada relação entre o chef e seu filho, que seguiu a profissão do pai, embora este preferisse vê-lo “doutor”. Uma leitura doce-amarga, que se harmoniza com o período atual.

Outra deliciosa surpresa veio como brinde da TAG, o mais popular clube de assinaturas de livros brasileiro, em dezembro: Mistérios perdidos, com três contos impressionantes de Arthur Conan Doyle (TAG, R$ 20), sem o personagem Sherlock Holmes. Muitos livros da TAG e seus “mimos” têm sido vendidos por particulares e em sebos virtuais na Internet. Vale procurar, assim como Nada (TAG/Alfaguara, R$ 50), estreia literária da espanhola Carmem Laforet, que, aos 23 anos, arrebatou o prêmio Nadal de 1944. Semiautobiográfico, o romance rendeu à autora processos de seus parentes, que se reconheceram em personagens tão realistas quanto desagradáveis. Aos 19 anos, uma jovem órfã chega a Barcelona para cursar universidade e vai morar na casa da avó e dos três tios. O ambiente sujo, sufocante e intimidador leva a moça a passar de observadora obediente a protagonista de sua vida, amadurecendo rapidamente no meio de um grupo que atualmente seria classificado como passivo-agressivo. Certamente, um dos textos mais impressionantes e cruéis sobre a vida da classe média na Europa do pós-guerra, um cenário que conta com a opressão extra do franquismo.

Impactante também é A cachorra (Intrínseca, R$ 24,90), da colombiana Pilar Quintana, uma novela intrigante que aborda sentimentos e as dificuldades de sobrevivência através da relação entre Damaris, que trabalha ocasionalmente como caseira numa cidade de veraneio, e sua cadelinha vira-lata. Frustrada pela dificuldade em engravidar, ela dá à cachorrinha o nome, escolhido para a filha jamais concebida, mas o carinho se esvai no primeiro cio da cadela, substituído por ressentimento e mágoa avassaladores, que envolvem – e oprimem – o leitor. Quase tão incômodo como Estão matando os meninos (Iluminuras, R$ 39), do pernambucano Raimundo Carrero, que se volta para a dolorosa realidade brasileira da violência urbana, ceifando a vida de tantas crianças pobres em grandes cidades. Escrito em cinco meses, depois que Carrero leu a notícia sobre a morte de um adolescente por “bala perdida” no Rio de Janeiro, em 14 contos ele se volta para o pasmo de pais que nada podem fazer para superar a dor dos assassinatos absolutamente injustificáveis de seus filhos, tratando de um cotidiano de muita miséria e coragem de famílias que buscam chegar ao dia seguinte, apesar de tantos sonhos destroçados pela cultura do racismo e da insuperável desigualdade social do país.


30.01.21 

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