Para manter a mente aberta, a espinha ereta e o coração tranquilo

No Brasil, dos últimos dias de um ano até a quarta-feira de Cinzas, subsiste um espírito festeiro contagiando todos – inclusive quem está na labuta – e transformando essa época em “quase férias”. Para ajudar na ilusão de que ainda é tempo de descanso e curtição da vida, vale a pena se enroscar em leituras estimulantes, na rede, sob a barraca da praia, na fila do banco, na condução, a fim de manter a mente aberta, a espinha ereta e o coração tranquilo.

Cem – O que aprendemos na vida (Intrínseca, R$ 49,90), da jornalista Heike Faller e do ilustrador Valerio Vidali, faz um apanhado de acontecimentos ao longo de 100 anos da vida humana, com frases e definições coletadas entre várias pessoas, em diversos países, com idades diferentes. As conquistas da infância, como aprender a ler e a dar cambalhotas, não são menos importantes do que descobrir o gosto pelo café, aos 18 anos. O amor que os filhos recém-nascidos despertam nos pais, apesar das noites insones, chegar à maturidade sem se sentir internamente idoso, apaixonar-se em qualquer época  e não saber se aprendeu alguma coisa a vida inteira são algumas das observações que podem tocar leitores de todas as faixas etárias.

A carioca Tania Carvalho é um viajante que trabalha como jornalista e escritora para levantar recursos e se embrenhar planeta afora. Uma de suas últimas incursões está em Cem dias em Lisboa (Imã Editorial, R$  42), em que conta o período quando  se mudou para a cidade, por não suportar a saudade da filha, do neto e do genro, que fazia doutorado em Portugal. Cinco anos antes, ela havia lançado Cem dias em Paris (Imã, R$ 40), traçando o perfil da capital francesa, onde já estivera tantas vezes que perdeu a conta, mas jamais como moradora.  A experiência lisboeta, no entanto, foi de redescoberta da Terrinha, que se transformou no Eldorado para migrantes e ponto turístico importante. Mais do que dicas de viagem, Tania oferece observações de quem adota um canto para montar casa e tornar-se “um local”.

Os contos reunidos em Rua de Dentro (Record, R$ 39,90), de Marcelo Moutinho inserem o leitor no cotidiano  da simplicidade de uma megalópole, que esconde seus preconceitos e dores sob a imagem de sofisticação cosmopolita impregnada em todos os seus moradores – até os mais humildes. A gente “comum” é retratada numa perene e surda luta pelo reconhecimento – a advogada trans espancada pelo pai na adolescência “para aprender a ser homem” está ao lado do jogador de futebol que namora um agente de segurança. Os amores e as sexualidades são camuflados em nome de um convencionalismo rompido, como nas crônicas situadas nos subúrbios cariocas de Nelson Rodrigues. As preocupações em relação à convivência entre o morro e o asfalto vêm dos pais do menino de classe média, convidado para dormir na casa do amigo, na favela, depois de um churrasco de aniversário.  Personagens que qualquer um encontra nas ruas todos os dias – camelôs, a moça que é paga para  empunhar a bandeira de um partido político, em campanha pré-eleição, embora não tenha qualquer identificação ideológica, costureiras, porteiros – compõem o imenso mosaico humano que dão vida à cidade.

A entrega do Oscar, no domingo, chama a atenção para alguns títulos que estão  na disputa deste ano. Dois Papas (BestSeller, R$  39,90), do  neozelandês Anthony McCarten, foi a base de seu roteiro – indicado ao Oscar –  para o filme dirigido por Fernando Meirelles, tratando dos encontros – alguns fictícios, outros, não –  entre Bento XVI e Francisco. Embora o livro relate fatos reais, tem quase o ritmo de sua deliciosa adaptação cinematográfica.  Christiane Leunens, autora de O céu que nos oprime (Bertrand Brasil, R$  42,90), também é neozelandesa, porém escolheu um cenário europeu para tratar da doutrinação nazista dirigida à juventude austríaca, nos anos 1930. O romance, que inspirou o filme Jojo Rabbit , mostra como a ideologia conquista uma criança, mesmo que sua família seja antinazista.


Publicado em 7 de fevereiro de 2020

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