O outono da matriarca

 Recém completei 60 anos, entrando no outono da minha existência, aquele que percebemos apenas quando ele acontece. Entre diversos aspectos da vida,  a leitura é um dos pilares no qual me apoio desde que minha mãe lia tirinhas em quadrinho todos os dias para mim. Aí vai um pouco do que conheci nesses rapidíssimos 60 anos, com sugestões para leitores de todas as idades.

Anos 1960 – O vício começou com os quadrinhos: Tarzan, Brucutu, Ferdinando, Flash Gordon. Alfabetizada, abria o Globo no chão da sala para ler jornal. Acabei consumindo lendo tudo o que podia: Batman, Homem-Aranha, Super-Homem, Superboy, Turma Titã, Luluzinha, Recruta Zero, Pato Donald; me encantei pelo Príncipe Valente, desenho primoroso de Hal Foster, meu primeiro interesse pelas sagas arturianas.

Com Monteiro Lobato, descobri o Brasil e a mitologia grega; com a Condessa de Ségur,  o que se esperava de mocinhas virtuosas. A visão sobre o feminino mudou com  Mulherzinhas, de Louisa May Alcott. Foi época de Laura Ingalls Wilder, a jovem pioneira norte-americana, da poesia de Casimiro de Abreu e Manoel Bandeira, da finada coleção Jovens do Mundo Todo. E vieram Os meninos da Rua Paulo, que devo ter lido, no mínimo, quinze vezes, Jules Verne, que, junto com Alexandre Dumas, se instalou em mim para sempre.

Década de 1970 – Não havia a fartura das publicações atuais para adolescentes, então, valia o que chegasse às mãos. Aos 11 anos, ganhei a coleção de Shakespeare de bolso da Ediouro. As histórias, havia lido antes, adaptadas nos Contos de Shakespeare, de  Charles e Mary Lamb, em volumes da Coleção Saraiva, que meu pai guardava. Ali estavam também Jack London, Edgar Ryce Burroughs (li muito Tarzan), Scaramouche, entre tantos épicos.  No colégio, eu era a única chata a seguir todas as indicações das professoras de literatura. E veio toda a obra de  José de Alencar, muito Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Machado, José Lins do Rego, Raul Pompeia, Alexandre Herculano. E veio a fase Fernando Pessoa, regada a cigarro e filosofia.

Caí de amores por Steinbeck, Saroyan, Salinger e Scott Fitzgerald, Charles Dickens, Thomas Hardy, Joseph Conrad, Henry James, Somerset Maughan. Li o Quarteto de Alexandria apenas porque Lawrence Durrell era o personagem mais carismático de Minha família e outros animais, a autoficção de seu irmão Gerald, que se tornou meu livro de cabeceira pra vida.  Custei a aceitar as moças de Jane Austen. Não entendia como elas não arrumavam um bom emprego para se sustentarem, em vez de dependerem de casamentos (eu só tinha doze anos, então).

Nada se comparou à descoberta dos policiais. Passei por Agatha Christie e Simenon.  A paixão foi Hammet. E Patricia Highsmith,  Chandler, James M. Cain, David Goodis, Erle Stanley Gardner, Ellery Queen. No fim da década, a fase gótica: Edgar Allan Poe, Lovecraft, Bradbury e Stephen King. Havia lugar para bobagem também, como As brumas de Avalon, que devorei.  E, sim, para  Sidney Sheldon, J. M. Simmel, O Relatório Hite, Ken Follet, romances de banca – lidos escondidos dos pais, claro. Contrabalançando o trash, Rubem Fonseca, Garcia Marquez (uma madrugada inteira lendo direto Cem anos de solidão) e Vargas Llosa.

Década de 1980 – A política me tomou com os livros dos ex-guerrilheiros – Os Carbonários, de Alfredo Sirkis, e os de Gabeira – e Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva. O Amante, de Marguerite Duras, virou meu presente para qualquer pessoa, de tão encantada que estava com aquela história de primeiro amor.  Estudando italiano, conheci o Léxico Familiar, de Nathalia Ginzburg, a escritora que eu – e qualquer um – gostaria de ser. A Brasiliense me apresentou a  Dario Fo, Skarmeta, John Fante. Foi a vez do feminismo me abraçar. O segundo sexo (de Simone de Beauvoir), O mito da beleza (de Naomi Wolf) me tocaram mais que Betty Friedan e Germaine Greer. Assim como Bronislaw Malinowski, Margareth Mead e Richard Leakey – até pensei em ser antropóloga também.

No fim da década, tive meu primeiro filho. Começou a biblioteca da mãe moderninha: Dr. Spock (sim, os bebês têm se comportado de maneira bem semelhante ao longo dos milênios), Nascer sorrindo, de Leboyer, Educar para a submissão, de Elena Giannini Belotti – que alerta para o perigo de reforçar os padrões machistas – e tantos guias de cuidados com crianças.

Década de 1990 –  O tempo da correria: filhos crescendo, novos empregos. Lia na fila do banco e na condução.  Descobri Ruth Rendell, outra rainha do crime, e Bridget Jones, que me fazia dar gargalhadas no metrô. Peter Mayle e seu Um ano na Provence me tornaram devoradora de livros de viagem. A.S. Byatt me domina com Possessão.

Últimos 20 anos  – O passado é tão recente que dificulta a avaliação “do que ficou”.  Profissionalmente, passo a resenhar e revisar livros, deixando um tanto de lado o prazer da leitura diante da premência em entrevistar autores de economia e coaches  de autoajuda. Os ensaios se sobrepõem à ficção. A literatura policial se renova com Tana French, Laura Lippman, Gyllian Flynn, A.S.A Harrison, Harlan Coben, Michel Bussi,  além dos escritores escandinavos.

A série iniciada por A amiga genial, de Elena Ferrante, me hipnotiza. A italiana Ferrante, como a espanhola Rosa Montero e a argentina Cintia Piñeyro escrevem diretamente para mim. Entrevisto o ídolo Alberto Manguel, e me congratulo: viver da escrita nos aproxima das pessoas mais inteligentes do mundo.  Um novo ciclo se desenha – o de ler para as netas as mesmas histórias que o pai e os tios delas ouviram, 30 anos atrás.



10/10/2020

Comentários

Postagens mais visitadas