O escritor enquanto personagem

 Escritor é um ser que vive a realidade com muito menos glamour que seus personagens. No entanto, muitos não resistem a se imiscuir em relatos ficcionais – ou não – , marcando presença em narrativas, mesmo quando mantêm distância da dita autoficção, como fizeram João Paulo Cuenca em “Descobri que estava morto”(Tusquets, R$ 25) e Chico Buarque com “O irmão alemão” (Companhia das Letras, R$ 30,90).[1] A incursão de escritores em suas próprias histórias não é nem como narrador ficcional, mas um estratagema para aumentar intriga e o atordoamento do leitor, principalmente em livros de suspense.


Existe quem busque o toque de realidade para validar o relato, usado por Mario Vargas Llosa na conclusão de “Tempos ásperos” (Alfaguara, R$ 44,90), quando conta sua visita a uma das personagens do romance histórico que montou para contar a intervenção norte-americana em golpes de estado na América Latina, notadamente a partir do que derrubou o governo progressista de Jacobo Árbens na Guatemala, em 1954. Ao se apresentar como o entrevistador da personagem, Vargas Llosa quebra o acordo com o leitor por trazê-lo para o mundo real, distanciando-se da trama. Também não são raros os textos que apresentam escritores no papel de protagonistas de histórias ficcionais, como, em “Oito detetives” (Faro Editorial, R$ 32,90), de Alex Pavesi, o romancista que abandonou a literatura depois de um sucesso discreto, preferindo viver de renda em sua mansão numa ilha no Mediterrâneo. Abordado por uma jovem editora, ele analisa uma série de contos que a moça pretende republicar.


A incorporação do papel de personagem é levada aos últimos detalhes pelo francês Guillaume Musso em “A vida secreta dos escritores” (LP&M, R$ 42,90) e pelo suíço Joël Dicker em “O enigma do quarto 622”(Intrínseca, R$ 48,70). Há três escritores dentro da narrativa de Musso. Um deles é o iniciante no mundo da literatura que quer mostrar seus originais ao literato veterano, recolhido há vinte anos na mansão que construiu numa ilha mediterrânea. O novato quer também entender o que levou o celebrado romancista ao isolamento. O último capítulo é contado pelo próprio Guillaume Musso, que dedica o livro, um thriller bem azeitado, quase um roteiro cinematográfico, a um certo Nathan, nome do escritor solitário que deu as costas para a glória mundana. Já a revelação de que o escritor Joël Dicker entrou na pele do romancista que passa alguns dias no hotel suíço, onde houve um misterioso assassinato, vem na menção a seu primeiro best-seller “A verdade sobre o caso Harry Quebert” como obra do narrador do suspense. Contribui para a descoberta de sua identidade as diversas citações ao seu falecido editor Bernard de Fallois, a quem o livro é dedicado. Nos dois livros, o excesso de soluções mais adequadas a filmes de espionagem do que a um texto literário tira um tanto do impacto narrativo de ambos os romances.


Em outro patamar de construção de enredo, “Baseado em fatos reais” (Intrínseca, R$ 24,90),rendeu um Goncourt, entre outros prêmios, em 2015, à francesa Delphine Vignan. Um duelo permanente entre as duas personagens está nessa mistura intencional de informações pessoais à trama gótica sobre a estranha relação de uma romancista/narradora chamada Delphine com a ghost writer L., que ninguém conhece ou vê. Se L. existe, se é fruto de sua imaginação, se passou a escrever seus livros, o porquê da relação entre as duas mulheres são algumas das dúvidas que nem o romance nem a autora respondem. Resta a dúvida para assombrar o leitor eternamente.


[1] Enquanto Cuenca descobre que existe um atestado de óbito de um assassinado que usava documentação com todos os seus dados, Chico soube, adulto, que tinha um irmão nascido de um romance do pai, jovem, na Alemanha.



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