Reencontros

Depois de seis meses encaixotados, meus livros começam a repovoar as estantes. Lentamente, porque abrir as mais de 80 caixas de uma vez pode acabar com a capacidade respiratória de todos os moradores, incluindo o gato Agador, que disputa as prateleiras com os volumes. Foi um período inicialmente aflitivo, já que muitas referências da vida estavam empacotadas, durante a reforma da nova casa, bem menor do que a antiga e sem tanto espaço para abrigar nossa modesta biblioteca.
Nesse meio tempo, cerca de 80 livros chegaram ao lar provisório, permitindo que eu me sentisse em casa. Comprei poucos, recebi muitos para trabalhar ou comentar aqui na coluna. Até me espantou a segurança que experimentei ao amontoá-los na mesa de cabeceira.Os livros são para mim o que hoje se classifica como “zona de conforto”. Na falta de pai e mãe, me acolhem, me acompanham e me guiam por descobertas infindáveis.
Entre as agradáveis surpresas com que me deparei nesse período está a ficção histórica O desaparecimento de Josef Mengele (Intrínseca, R$ 39,90), do jornalista Olivier Guez.  Durante dois anos, Guez percorreu os locais onde Mengele se escondeu ao longo de quase quatro décadas e se debruçou sobre uma extensa bibliografia a respeito do médico metido a cientista à frente de experimentos cruéis com prisioneiros de campos de concentração. Mengela jamais foi encontrado pelos incansáveis Caçadores de nazistas (Intrínseca, R$ 59,90), retratados pelo também jornalista Andrew Nagorski em livro-reportagem que traça a busca empreendida a partir dos anos 1960 por quem não pretendia deixar impunes criminosos de guerra. Olivier Guez preferiu contar a vida de Mengele  em forma de romance, a única maneira, diz ele, de se aproximar da macabra trajetória de um personagem tão vil, sustentado no exílio pela família, por simpatizantes e refugiados nazista e com a complacência – e o suborno – dos governos da Argentina e Paraguai. Em 1979, Mengele morreu, de causas naturais, no Brasil, sem responder por seus crimes. Apesar do protagonista abjeto, Olivier Guez monta uma narrativa fascinante, sem jamais descuidar de apontar a monstruosidade do nazismo e de Mengele.
Outra ficção histórica, esta com mais liberdade para tratar dos personagens, embora fruto de uma pesquisa cuidadosa da francesa – de Guadalupe – Maryse Condé – é Eu, Tituba,  bruxa negra de Salém (Rosa dos Tempos, R$ 44,90), que trata com franca simpatia uma figura esquecida no processo contra os acusados de feitiçaria em 1692, em Massachussetes. Os registros legais contam que Tituba, escrava nascida no Caribe, foi a primeira a confessar pacto com demônios – e escapou da condenação à morte. Maryse Condé torna Tituba mística e a leva, depois do julgamento, de volta a Barbados, onde teria nascido. A abordagem da sociedade de então é de uma estranha ao mundo dos brancos, que mantém-se fiel às origens e cultua a liberdade.
Comecei a abrir as caixas de livros na semana do anúncio do Nobel de Literatura, aflita por não poder –ainda –  folhear O medo do goleiro diante do pênalti e A mulher canhota, lançados pela Brasiliense no Brasil nos anos 1980, quando Peter Handke entrou na moda, por suas parcerias com o cineasta Win Wenders. O austríaco Handke tem mais alguns poucos livros publicados por aqui, mas não é desconhecido para as gerações que acompanharam a retomada do cinema alemão. Já da polonesa Olga Tokarczuk, que recebe com um ano de atraso a premiação de 2018 – suspensa depois de um escândalo sexual envolvendo os integrantes da Academia -,  as livrarias brasileiras têm apenas Os vagantes (Tinta Negra, R$ 46,90). No próximo mês a Todavia lança seu romance Sobre os ossos dos mortos (R$ 59,90).

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