Essa ridícula ideia de não te ler


Daqueles títulos magníficos, daqueles textos intensos, daquelas narrativas que deságuam em outras histórias, como no encontro com o maior amigo, o companheiro da juventude, da infância, da construção de vida. A ridícula ideia de não te rever (Todavia, R$  54,90), de Rosa Montero, volta a causar o delicioso impacto experimentado na leitura de A Louca da Casa, que apresentou a escritora espanhola ao público brasileiro em 2004. Com o mesmo estilo arrebatado do contundente exercício literário que abordou as formas da criação e seus criadores, Rosa Montero parte de um diário da cientista Marie Curie para refletir sobre a posição da mulher ocidental no mundo contemporâneo e os sentimentos comuns em qualquer sociedade, entre eles, o amor.

Nascida Marya Sklowdoska, apelidada Manya, a jovem polonesa que afrancesou o nome ao se radicar na França é inspiração numa obra cuja própria autora nem imaginava no que daria, exceto que não seria “um livro sobre a morte”. É da morte, no entanto, que ela trata, em sua primeira declaração:  “Como não tive filhos, o mais importante que me aconteceu na vida são meus mortos”.  A morte será discutida com naturalidade, assim que o texto chegar a ela,  já que os livros nascem “de um ovinho minúsculo, uma frase, uma imagem, uma intuição; e crescem (…)  até se transformarem numa criatura completa e geralmente inesperada”.
Está definido, então, o tom da reflexão que seguirá por páginas como uma conversa íntima com o leitor, fluindo sem se fixar num tema rígido, adentrando por problemas   pessoais que boa parte da humanidade enfrenta, como  o atordoamento diante da morte de alguém próximo. Ao se deparar com o desespero de Marie ao saber da morte do marido Pierre, atropelado a caminho do trabalho, Rosa Montero recorda a dor da perda de seu companheiro, depois de 21 anos de casamento.
Marie, a única mulher – e primeira pessoa –  a ganhar dois prêmios Nobel em categorias distintas,  buscou cercar-se de homens brilhantes  e foi muito maior que todos eles, embora precisasse de Pierre para se destacar no meio científico. Dividiu com marido e com o pesquisador  Henri Becquerel o Nobel de Física em 1903 pelos estudos sobre a radiotividade.  Oito anos depois, recebia o Nobel de Química por isolar o rádio e o polônio (assim chamado em homenagem à sua terra natal).  O pioneirismo de Marie na ciência não serviu, entretanto,  para aumentar a visibilidade das mulheres em campos dominados pelos homens. Entre os ganhadores do Nobel, há 786 homens e apenas 44 mulheres, a grande maioria delas por literatura ou no prêmio da Paz. Das quatro laureadas em Química, uma é a própria Maria; outra é sua filha, Iréne.  A filha mais nova, Eve, trouxe indiretamente mais um Nobel para a família: em 1965, seu marido, Henry Richardson Labouisse Jr,  era o diretor da Unicef, quando a instituição ganhou o Nobel da Paz.
Além de detalhar como Marie Curie se desdobrava para cuidar da família e de seu trabalho (a dupla jornada já era uma realidade:  Pierre exigia atenção quase exclusiva, ficando amuado se ela se dedicasse às filhas), não falta o saboroso tom de escândalo ao analisar o envolvimento da cientista, já viúva, com o físico Paul Langevin, o que quase lhe custou o Nobel de Química. A mulher de Langevin, um sedutor contumaz, fez pressão contra Marie nos jornais, além de ameaçá-la de morte, caso não deixasse seu marido e a França. O romance acabou, Marie recebeu seu prêmio e, anos depois, uma de suas netas se casou com um neto de Langevin – expediente que alguns autores, entre eles Laura Esquivel, em Como água para chocolate, e Emily Brönte, em O Morro dos Ventos Uivantes,  criaram para redimir os amores impossíveis, unindo os descendentes dos amantes que jamais puderam viver felizes para sempre.
Porque, sim, a arte vive da imitação da vida.

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