Fragmentos de discursos amorosos


O pai da menina morta (Todavia, R$ 49,90), a dilacerante abertura de alma de Tiago Ferro, acaba de ganhar o Jabuti 2019 na categoria Romance. Venho lendo o livro – estreia do autor na literatura –  aos pouquinhos, o que é facilitado pela forma fragmentada da narrativa. E também por dar tempo para entender a recomposição diante da dor de um enlutado dissociado da realidade, mesmo quando um leve interesse na rotina do mundo se ofereça como bálsamo para escapar da tristeza.

A perda de uma filha aos 8 anos por influenza B levou Tiago, que se julgava somente um editor de revista literária, a dar seus primeiros passos como escritor. Seu relato não traz alívio para a tristeza, mas vai refletir sobre a paternidade, o envolvimento, o desejo de perpetuar a espécie frustrado pelo inevitável.  O recolhimento forçado pela tragédia traz se desdobra na menção aos sentimentos de culpa de tantos outros pais,  que trabalham em nome do sustento de filhos que mal encontram. Ou dos que perdem a família para a violência urbana. E também na trajetória de homens célebres que perderam filhos – o poeta  Carlos Drummond de Andrade, que morreu dias depois do falecimento da filha Maria Julieta, os músicos Gilberto Gil e Eric Clapton, os atores John Travolta e Keanu Reeves, o naturalista Charles Darwin.
A escolha pela narrativa em blocos compõe o relato do despedaçamento da alma, dando fôlego até quando obriga o leitor a experimentar sensações cada vez mais rejeitadas pela sociedade ocidental. O luto rende belíssimas reflexões literárias. O ano do pensamento mágico (Nova Fronteira, R$ 21,90), da americana Joan Didion, A ridícula ideia de nunca mais te ver (Todavia, R$ 54,90), da espanhola Rosa Montero, mostram o quanto a dor se tornou inconveniente nos tempos atuais, embora continue presente. O distanciamento da morte – hospitalizada, mencionada quase como uma derrota – pode ter tornado mais duro o enfrentamento da separação, ainda que as exigências de demonstrações públicas de luto – expressas por comportamento e vestuário austeros – tenham caído.
“(hoje)
Escrever me cura.
Estou sendo honesto?
(segunda-feira)
Ligo para a administração do cemitério da Lapa. Eles me passam o número de quem produz as placas dos túmulos. (…) O funcionário fica de mandar uma foto da placa já instalada. Nunca manda.
(…)
(sábado)
Eu ainda faço parte deste mundo? É justo jogar na cara dessa gente a minha tragédia? O Pai Leproso. A maioria das pessoas não quer chegar perto. Isso pega?”
O desalento surge em cada  trecho que descreve a continuidade da vida ou recorda a formação da família, que se destroça.  Em pequenos blocos de frases/parágrafos, as pinceladas do cotidiano se encadeiam.  O exílio social também se impõe, porque a morte é aquela verdade incômoda que deve ser guardada nos álbuns de fotografias antigas. A comoção está em cada página de desassossego diante do mistério da existência. O bom humor aparece aqui e ali, a alegria vai forçar sua entrada no corpo dolorido, a vida seguirá. Sem tanta graça, mas seguirá.
Outra premiada com o Jabuti foi Josélia Aguiar, pela belíssima biografia de Jorge Amado (Todavia, R$ 84,90). A jornalista e historiadora, hoje à frente da Biblioteca Mário de Andrade, do Centro Cultural São Paulo,  chamou atenção como curadora da Festa Literária de Paraty em 2017, que homenageou Lima Barreto, e em 2018, que recordou a obra de Hilda Hist.
Se a Flip 2019 causou polêmica por celebrar Euclides da Cunha, a de 2020 pode até sofrer boicote, ao homenagear a americana Elizabeth Bishop, que morou no Brasil quando estava casada com a arquiteta  Lotta de Macedo Soares. Primeira autora estrangeira a ser reverenciada em Paraty, Elizabeth fazia críticas duras – demonstrando certo menosprezo – à literatura brasileira e ao país. Escolha estranha numa época de estranhamentos.

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