O minimalismo contra o prazer solitário

A volúpia do leitor obsessivo incomoda. O consumismo daquele ser que se julga intelectualizado irrita pela ostentação perpétua de seus troféus: livros enfileirados em prateleiras que se impõem na decoração de pequenos cômodos dominados por um imenso aparelho de televisão.  O despeito ou a irritação de quem não tem “tanto tempo livre assim” para ler se manifesta diretamente na pressão para que o bibliofágo se desfaça, o quanto antes, de seu acervo.
“Leio e passo o livro adiante”, profere o orgulhoso proprietário de uma coleção de relógios/CDs/discos de vinil/action figures/vinhos do mundo inteiro/camisas de futebol. O desdém prossegue nas indagações seguintes: “Mas você já leu isso tudo? Pra que então mantém?”, inquire, enquanto consulta seu novo telefone celular cujo valor é o mesmo que um sebo daria por todos os volumes da biblioteca particular do leitor compulsivo.
Talvez a implicância esteja apenas relacionada à solidão da leitura, ao prazer solitário, à experiência única numa sociedade de animais gregários. O desinteresse por objetos de culto massivo é visto com desconfiança. Ali está um espécime que vive à parte, sem apreço pelos produtos dirigidos a multidões de consumidores, que sequer é um grande viajante. Prefere andar de livro na mão, no supermercado, na sala de espera do médico, na praia, em vez de partilhar suas observações nas redes sociais.
O leitor compulsivo nem sempre é o nerd que mora no porão da casa mãe, ao contrário. Mas sua  bibliotequinha incomoda quem não cultua suas paixões. Desculpáveis são médicos, advogados e professores. Esses podem ter livros para “consultar”. Ler descompromissadamente, só pelo prazer, não faz sentido, não gera dividendos para a sociedade.
Em tempos de socialização das misérias, desvencilhar-se de livros é recomendação da guru de organização, Marie Kondo, que o prescreve no best-seller A mágica da arrumação (Sextante, R$ 24,90). O método é simples:  Kondo acredita que só se deve manter no lar o que traz felicidade aos moradores. E utilização prática.  Ao acumulador de literatura, ela aconselha desfazer-se dos títulos que ainda não teve tempo der ler, dos que apenas enfeitam a estante  e dos que estão em duplicata, chegando ao número ideal e “saudável” de, no máximo, 30 volumes.  A coach minimalista vem do Japão, a terra onde nasceu a palavra Tsundoku – uma gíria em voga desde a Era Meiji (1867-1912), que combina as expressões  tsunde-oku (empilhar coisas para ver mais tarde e deixar de lado) e dokusho (ler livros).
A Black Friday serve de ensejo para aquele que não se desfaz dos livros em nome de sua felicidade (e que guarda duplicatas, sim, porque este tem um prefácio maravilhoso e o outro ganhou uma edição tão bonita) cair nas livrarias.  O mais recente tsundoku de uma casa onde o espaço é reduzido para armazenar “tantos livros assim” se formou por esses dias. A maioria dos volumes já foi folheada, outros aguardam sua vez, ainda fechadinhos, e alguns estão em pleno processo de degustação. Entre as ofertas dos saldões, o primeiro devorado foi um antigo flerte: Aqui (Companhia das Letras, R$ 94,90, preço fora da 6ª feira Negra), a graphic novel de Richard McGuire, que mostra a passagem de milênios, com mudanças biológicas, ambientais e sociais a partir do desenho de um mesmo ângulo de um local novaiorquino.
Dicas de compras virão natalinas nas próximas colunas!!!

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