Na Sicília, como no mundo…

“Ou você adora  Andrea Camilleri ou você ainda não o leu”. A definição do controvertido A. J. Finn*, autor de A mulher na janela (Arqueiro, R$ 44,90), é perfeita para quem já percorreu o universo do escritor siciliano, que morreu em julho, aos 93 anos, deixando mais de 100 livros, entre eles uma série de 27 volumes protagonizados pelo inspetor Montalbano. Desses, apenas 16 foram lançados no Brasil, sem qualquer ordem cronológica. O último, Uma voz na noite Record, R$ 44,90), traz os personagens que circundam Montalbano – seus assistentes, a namorada e seus superiores, sempre reclamando dos métodos investigativos do inspetor -, diante de uma série de crimes que são abafados por políticos ligados à Máfia.
Camilleri dizia-se alérgico a escrever sobre a Máfia, mas não deixa de mostrar a presença da organização criminosa na sociedade italiana. A delegacia onde trabalha Montalbano fica na fictícia Vigata, inspirada na cidade natal de Camilleri, Porto Empedocle, na Sicília. Honesto, amante da boa mesa, intelectualizado e irônico, o inspetor é um solteirão de meia-idade, que vive às turras com a namorada, Lívia. Montalbano, cujo nome homenageia o escritor espanhol Manuel Vásquez Montalbán, foi criado em 1994 por Camilleri, que estreou como romancista no fim dos anos 1970. Só na Itália, sua obra vendeu 25 milhões de exemplares. A popularidade de Montalbano aumentou com a série de televisão estrelada por Luca Zingaretti.
Camilleri, que foi roteirista e diretor de televisão e teatro, não obedecia às fórmulas consagradas das novelas policiais da atualidade. A narrativa se desenrola com o ritmo natural às investigações – que não chegam a ser tão vagarosas quanto a de casos rumorosos no Brasil, que se arrastam por anos a fio –, num ambiente bastante semelhante ao da vida real, em que o poder dos criminosos domina a política. Camilleri, que sempre se afirmou de esquerda, critica diretamente os políticos sicilianos em boa parte de suas histórias. Nesta, o inspetor vê desaparecer a ocorrência policial  contra um homem preso por uma briga de trânsito depois que o pai do motorista, um deputado, interfere. Nada tão diferente do que acontece nos trópicos.
*A.J.Finn, pseudônimo do americano Dan Mallory, não era benquisto no meio editorial por florear sua biografia com um falso Ph.D em Oxford, dizer que sobrevivera a um câncer e ainda forçar um sotaque falso de britânico. Diversas editoras recusaram os originais do livro ao descobrir a identidade do autor. Seu hipnotizante thriller sobre a mulher que bisbilhota a vida dos vizinhos, acompanhando a rotina de uma família aparentemente perfeita até descobrir um segredo tenebroso, vendeu mais de 100 milhões de exemplares no mundo, e já foi adaptado para o cinema. O correto suspense psicológico, mais cerebral e sem o ritmo divertido de Camelleri e seus atrapalhados assistentes, é típico da literatura produzida para conquistar o leitor, sem tanta originalidade, mas com qualidade narrativa impecável.

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