A hora da virada

Sem uma grande mudança, boa parte da literatura ficaria órfã. Ficção, geralmente, trata das transformações de personagens diante das viradas da vida. Obras de não-ficção muitas vezes pretendem estimular essas mudanças. E assim nasceram os chamados livros de viagem, contando como a literal trajetória de seus autores levou a descobertas e decisões de modificar pessoal ou geograficamente suas rotinas. Se a literatura ocidental se sedimenta na Idade Média com a troca de relatos edificantes e poemas sobre os amores transformadores dos andarilhos que se dirigiam até Santiago de Compostela, a busca pela grande virada permaneceu como tema recorrente até a atualidade.
boom dos livros de viagem contemporâneo – não os guias, mas os relatos – acontece no início dos anos 1990, quando o publicitário inglês Peter Mayle lança “Um ano na Provence” (Sextante, R$  34,90), contando o mês a mês da lenta reforma do casarão que ele e a mulher compraram no Sul da França. Falando sobre culinária, trânsito, corridas de cabras, o impiedoso vento Mistral e o modo de vida característico local,  o livro foi um sucesso. A modesta tiragem inicial  de 3 mil exemplares se esgotou rapidamente. As novas edições, com tradução em 38 idiomas, venderam cerca de  6 milhões de cópias no mundo todo. Estava criado um lucrativo nicho, e, embora muitos vizinhos de Mayle se irritassem com o excesso de turistas que passaram a invadir a região, a Provence  continuou sendo seu tema em outros livros de observações e alguns romances.
Peter Mayle, que morreu há pouco mais de um ano na Provença, era o que a professora norte-americana Frances Mayes considera um “expatriado de verdade”. Em  1996, ela decidiu explorar o filão aberto por Mayle, lançando “Sob o sol da Toscana – Em casa na Itália” (Rocco, R$  45), em que narra a reforma do casarão onde vive metade do ano. Desde então, dedicou sua obra a descrever a beleza da região. Seu mais recente romance, “Quatro mulheres sob o sol da Toscana” (Rocco, R$ 54,90), é quase um roteiro cinematográfico pronto para virar filme e ter  Diane Lane como uma das protagonistas, as americanas em férias que decidem se estabelecer na Itália. A atriz, que encarnou uma fictícia Frances na comédia romântica livremente inspirada no livro que deu fama à Mayes, já encarnou mulheres vitoriosas que conquistam nova vida e amores ao encontrarem novos cenários para morar.
Nem sempre, no entanto, a mudança para um ambiente idílico traz felicidade para os personagens. Em “Você nasceu para isso” (Intrínseca, R$ 39,90), de Michelle Sacks, uma família se muda da Califórnia para uma cidadezinha na Suécia. A cenógrafa Merry larga uma bem-sucedida carreira e se dedica com empenho admirável às tarefas domésticas. Mantém uma horta que fornece quase toda a alimentação do marido Sam e do bebê Conor, faz compotas, cuida da casa e do filhinho, enquanto sofre de depressão. Sam, demitido do emprego estável numa universidade  por assédio sexual a uma aluna, mostra-se entusiasmado em ser um habitante do novo Paraíso terrestre. A todos, conta que pretende iniciar uma nova carreira como cineasta. Dissimulados em nome de uma imagem de perfeição que fomenta a frustração, Sam e Merry se esquivam de encarar seus próprios fantasmas, preferindo falsear exuberantemente um estilo de vida inexistente, escondendo ressentimentos e insatisfações. Narrado por três personagens, o thriller apresenta uma faceta da contemporaneidade:  a ostentação como forma de superar as frustrações pessoais.

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