Antídotos para tempos dolorosos

Em tempos difíceis, quem pretende manter a sanidade mental precisa se entregar à arte. Literatura, música, cinema e teatro surgem como  máscaras de oxigênio que despencam em cima dos passageiros num avião desgovernado. No momento em que o Brasil assiste ao fim dos direitos trabalhistas e da Previdência Social pública, o melhor é se entregar à arte, um antídoto diante dos antolhos que cegam boa parte dos eleitores.
Há dois anos, José Almeida Júnior ganhava o prêmio Sesc de Literatura com o Última Hora (Record, R$  49,90), uma deliciosa recriação do fim da Era Vargas e a manipulação da opinião pública pelos meios de comunicação. Agora, ele ousa atacar o maior ícone da literatura brasileira com O homem que odiava Machado de Assis (Faro Editorial, R$  39,90). O protagonista Pedro detesta “o mulato Joaquim” desde a infância. Os dois se conhecem na infância, quando Pedro, filho de um fazendeiro paulista, vai morar numa chácara no Morro do Livramento, vizinho do menino pobre Joaquim. A rivalidade entre os dois começa na disputa pelo amor de Joana, filha do padre que controla a vida da comunidade local. Estudando Direito em Portugal, Pedro se apaixona por Carolina, a quem reencontra no Brasil, já casada com Joaquim, celebrado jornalista e escritor, que rouba do companheiro de infância a ideia de escrever um livro contado por um morto.
Ao misturar dados biográficos reais com a sátira, José Almeida Júnior traz um Rio de Janeiro machadiano, miscigenado e declaradamente racista, no fim do século XIX.  Uma situação que não se altera quando morre o escritor, cujo talento supera o preconceito racial. Machado é reconhecido como o maior dos escritores brasileiros em sua própria época. Por todos, exceto pelo ex-rival de infância e juventude, que o considera um ladrão de ideias.
Criar ficção em cima de figuras reverenciadas é praticamente um gênero literário. Shakespeare, devido às lendas que cercam sua origem, é personagem de quase tantos filmes e livros quanto sua obra.  Como Machado, teve uma vida banal, deixando para os personagens as grandes reflexões existenciais e aventuras. Poucos escritores poderiam ter vida mais invejável que seus personagens. Os que mais encarnaram audazes aventureiros ao longo da existência foram os americanos Jack London e  Ernest Hemingway, com mortes também pouco ordinárias: o primeiro, aos 40 anos, de overdose – talvez acidental – de morfina; o segundo,  suicidou-se aos 62 anos. London foi marinheiro, participou da Corrida do Ouro no Alasca, envolveu-se com muitas mulheres e escreveu com afinco e exuberância. Hemingway foi repórter, cobriu os conflitos da Guerra Civil Espanhola, envolveu-se com muitas mulheres e escreveu com afinco e exuberância. Combinavam o talento estrondoso com surtos depressivos, mas nunca deixaram a vida desviá-los da literatura. Uma das pequenas maravilhas criadas por  Jack London foi a novela  A praga escarlate (Conrad, R$ 20), uma distopia contada pelos sobreviventes de uma epidemia que aniquila com dois terços da população mundial. Sobrevivem os imunes à doença e os mais fortes, que dominam a sociedade inculta, cuja primeira perda é a estrutura de linguagem e a capacidade de comunicação. Entre as delícias deixadas por Hemingway, o confessional Paris é uma festa (Record, R$ 59,90) tem o frescor das lembranças da juventude de um expatriado de 22 anos, que chegava à capital do mundo recém-casado, pronto a se formar no espírito estimulante que a cidade oferecia para a produção intelectual no pós-Primeira Guerra Mundial. As crônicas sobre suas descobertas, o encontro com escritores como Scott Fitzgerald e Gertrude Stein, essenciais para alguém tão competitivo quanto Hemingway, mostra o processo de construção de quem renovou o romance ocidental no século XX.
Mergulhar nessas páginas facilita encarar a realidade desses tempos dolorosos.

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