As almas pervertidas*

contecem com frequência e há mais tempo do que imaginamos, esses massacres de inocentes. Há registros bíblicos sobre a morte de  crianças por ordens do Estado. A eles se somam a incompreensível fúria de assassinos que, em boa parte das vezes, se suicidam depois de entrar para a História como carrascos de desconhecidos. A literatura raramente trata do tema. Uma exceção é o contundente  Precisamos falar sobre o Kevin (Intrínseca, R$  54,90), que deu à britânica Lionel Shriver o Orange Prize ao contar o drama de Eva, a mãe de um adolescente condenado por estar à frente de uma chacina em sua escola.
Lançado em 2003,  Kevin antecipou em mais de uma década  O acerto de contas de uma mãe – a vida após a tragédia de Columbine (Verus, R$ 47,90), de Sue Klebold, cujo filho Dylan e o amigo Eric Harris assassinaram treze pessoas e feriram 24 na escola onde estudavam, no Colorado, Estados Unidos, em 1999. Na tentativa de entender o que motivou o crime, Sue fala abertamente sobre sua própria dor e a perda de fé em tudo o que construiu. O jornalista Andrew Salomon entrevistou os pais de Dylan para o livro Longe da árvore (Companhia das Letras, R$ 86,90), que trata de crianças e pessoas marginalizadas por diferentes razões, entre elas o parentesco com criminosos. Os Klebold eram apontados pelos vizinhos como felizes e unidos, contrariando, segundo Salomon, a direita americana, que atribuiu o massacre ao “colapso dos valores familiares ”, enquanto a esquerda reclamava da violência do cinema e pedia leis mais rígidas de controle de armas.
Na ficção, Lionel Shriver preferiu criar uma mãe deprimida,  incapaz de se dedicar a seu bebê com desvelo – o que poderia justificar o jovem cruel e sociopata que surge.  Alguém parecido com o norueguês Anders Breivik, antes de seu diagnóstico psiquiátrico como esquizofrênico em surto, que matou 77 pessoas e deixou feridas 51, em julho de 2011. Anders teve uma infância complicada pelos surtos depressivos da mãe. Morava na mesma rua de Oslo onde vivia a  jornalista Åsne Seierstad, especialista em cobertura de conflitos internacionais. Åsne conversou com parentes de vítimas e  sobreviventes do atentado provocado por Breivik numa ilha onde jovens participavam de uma reunião política para Um de nós (Record, R$ 64,90).  O título encerra uma questão crucial para a jornalista: como explicar que a sociedade norueguesa, tão admirada mundo afora, abrigue  grupos declaradamente racistas e xenófobos, com os quais Breivik se identificava.
A consistente pesquisa de Åsne Seierstad é tão inquientante quanto a autobiografia do fuzileiro naval Chris Kyle, que, na abertura de Sniper americano (Intrínseca, R$ 39,90), descreve como executou uma mulher – que carregava uma granada – no Iraque. Foi a única vez em que matou “alguém que não fosse um combatente homem”, conta Kyle.  “Meus tiros salvaram vários americanos, cujas vidas claramente valiam mais do que a alma pervertida daquela mulher”, afirma Kyle, que matou 150 pessoas a serviço do Estado americano e destila um patriotismo exacerbado, desconhecendo a autonomia de territórios estrangeiros. Criado em pequenas cidades do Texas, onde aprendeu a “importância da família e de valores tradicionais como patriotismo, autoconfiança e zelo”,  Kyle ganhou do pai seu primeiro rifle aos 8 anos, desenvolvendo paixão por  armas e caça.  Em 2013, já aposentado, ele e um amigo foram mortos a tiros por um veterano da Guerra do Iraque que sofria de transtorno pós-traumático. Ambos estavam armados, porém não tiveram tempo sequer de destravar as pistolas.
*O título não corrobora a declaração de Chris Kyle. Ao contrário, refere-se a assassinos – com ou sem a chancela do Estado – que nos tornam reféns da violência cotidiana.

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