A inquietude contemporânea de Silvina Ocampo

Por que Silvina Ocampo demorou tanto a merecer uma boa edição brasileira de seus contos? A argentina, que morreu em 1993, ficou mais conhecida por estas plagas por ser casada com Adolfo Bioy Casares e amiga próxima, como o marido, de Jorge Luis Borges. Reunia um grupo de intelectuais respeitadíssimo e dava a palavra final nos textos de Borges e Bioy Casares, além de produzir literatura de alta qualidade, como se comprova em A fúria e outros contos (Comapnhia das Letras, R$ 56,90 ), publicado no Brasil 60 anos depois de seu lançamento.
A indiferança  diante do talento de Silvina estaria, segundo  estudiosos de sua obra, em dois fatores: a época em que viveu e o machismo. Conta também contra ela ter a seu lado, constantemente, dois homens brilhantes – os três se encontravam quase que diariamente.  Com o mulherengo Casares, manteve uma relação aberta por quase cinco décadas (viveram juntos seis anos, antes de se casarem oficialmente em 1940), adotando como sua uma filha do marido. Anticonvencional, entre suas relações extraconjugais haveria algumas com mulheres, acreditam os biógrafos. Antissocial, não gostava de ser fotografada e era discreta o suficiente para jamais ter se rendido à tentação de escrever um diário, resguardando sua vida particular do público.
A fascinante personagem real se acostumara a viver nos bastidores.  Sua irmã mais velha, Victoria Ocampo, fundadora e editora da revista Sur, seria o correspondente hoje a uma “influenciadora digital”. Sobre a anticonvencional Silvina, apesar do inegável talento, não faltavam comentários sobre sua agitada vida amorosa e as suspeitas de incesto, uma com a futura sogra, que teria sido sua amante quando a apresentou a Bioy. O outro caso escandaloso envolveria um triângulo amoroso com Bioy e a sobrinha adolescente, Gelca, o que revoltou Victoria, que cortou relações com a irmã.
A produção de Silvina, no entanto, é indiscutivelmente atemporal e inquietante. Vanguardista, reproduziu a oralidade da região do Prata, escrevendo no chamado “voceo”, deixando de lado a forma culta de seus contemporâneos.  Como conseguia transpor para a literatura essa fala de classes sociais com quem pouco convivia intriga a escritora Mariana Enriquez, autora de uma biografia sobre Silvina.  Mistérios que Victoria Ocampo tentou esclarecer na crítica publicada na revista Sur, em 1937, sobre o primeiro livro da irmã, Viaje olvidado: “Vejo uma pessoa disfarçada de si mesma”.
O lançamento de A fúria, em 1959,  consagra Silvina como uma escritora madura, que mostra a vida pelos ângulos mais cruéis e surpreendentes, sem pudores em apontar a maldade na infância ou na velhice. Nada suavizado em seus personagens, que estão sempre prontos a espantar o leitor pela mais completa ausência de remorso face a atitudes pouco elogiáveis. Os pruridos morais passam distante da narradora de A continuação, um conto epistolar que a cada página traz uma revelação contraditória sobre o caráter dos integrantes de uma família. Ciúmes, possessividade e vingança são elementos de construção dos lares burgueses ou proletários, onde crianças não se cansam de dissimular os mais horrendos traços de caráter.
Apesar do atraso de seis décadas, vale a pena ler a atualidade em  Silvina Ocampo.

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