Livros que doem na alma



Nos anos 80, li Parte de minha alma (Rocco, R$ 6 – em sebos), a autobiografia de Winnie Mandela, em que ela contava sua construção pessoal de militante aguerrida antiapartheid a partir do casamento e da prisão do marido Nelson Mandela, que passou 27 anos na cadeia. A vida conjugal se esfacelou pouco mais tarde. Winnie foi condenada por  fraude financeira e cumplicidade em crimes violentos.  Acabou ali meu encantamento pela autora daquele livro tão bonito, do qual acabei me desfazendo prematuramente. Gostaria de reler esta semana, quando Winnie morreu num semiostracismo.

Um dia antes da morte de Winnie Mandela, a poeta Maya Angelou foi lembrada, pois faria 90 anos, se estivesse viva. Pouco badalada no Brasil, celebradíssima nos Estados Unidos, destacada pelas lideranças negras, também escreveu uma autobiografia – Eu & Mamãe & Eu (Rosa dos Tempos, R$ 37,90) – a partir da influência que a mãe, Vivian, exerceu sobre ela. Aos três anos, Maya e o irmão mais velho foram viver com a avó paterna, de quem só se separaram uma década mais tarde, para voltar a morar com a mãe. O texto expressa claramente a dificuldade em estabelecer laços afetivos e, principalmente, em eclipsar a figura forte de Vivian, que não se furtou a permanecer longe dos filhos para seguir seu próprio caminho, um comportamento ainda hoje raro entre mulheres. A imensa admiração pela mãe e o empenho em se afirmar num país francamente racista estão em cada linha, que escondem o embate camuflado da mágoa pelo abandono e o reconhecimento da força daquela mulher que sempre estava pronta a apoiar os filhos.
Em momento político de polarização ideológica vivida no Brasil, a leitura do pensamento conservador poderia ser irritante para as mentes que se batem contra as convenções e a manutenção de um status que privilegia algumas poucas parcelas da sociedade. Roger Scruton é uma das vozes do conservadorismo britânico, como demonstra em sua incisiva crítica aos esquerdistas em Tolos, fraudes e militantes – Pensadores da Nova Esquerda (Record, RS 54,90). O tom condescendente com quem vê o mundo por outro ângulo surge de quando em quando, porém ele não desdenha de seus adversários. Reconhece a importância e o encantamento que causaram homens como Eric Hobsbawn, Edward Said, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Slavoj  Zisek. Da mesma maneira que acadêmicos brasileiros, tenta derrubar suas ideias com uma redação irônica e inteligente, trocando a argumentação pela força do sarcasmo. A princípio, envolve o leitor com seu charme, mas, em cinco páginas revela claramente o que defende em trechos como “O objetivo da “justiça social” já não é a igualdade perante a lei ou iguais reivindicações aos direitos da cidadania, como defendidas durante o Iluminismo (…) é um rearranjo compreensivo da sociedade, a fim de que privilégios, hierarquias e mesmo a desigual distribuição de bens sejam superados ou desafiados”. Um perigo sucumbir à lábia didática de Scruton, que acredita ter se esforçado em apontar “o que é bom nos autores” que revisou. A arrogância que emprega ao falar da “causa sem descanso” das esquerdas de lutar pela libertação de vítimas que “sempre surgem no horizonte assim que as últimas escapam para o vazio”, enumerando na agenda social a libertação das mulheres, “dos animais do abuso humano, dos homossexuais e transexuais da “homofobia” e mesmo dos mulçumanos da “islamofobia” (SIC)”. A retórica afinada do conservadorismo é internacional e deve ser conhecida por quem a combate, mesmo que incomode a alma.

Publicado em abril de 2008








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