A barbárie de cada dia

A cada dia, 13 mulheres são assassinadas no Brasil. Das 4.539 mulheres assassinadas no País em 2017, 1.133 foram vítimas de feminicídio. Diariamente são registrados 600 casos de violência doméstica, perfazendo mais de 200 mil ao ano no Brasil, que teve notificados mais de 60 mil casos de estupro em 2017. A cultura da misoginia brasileira tem sido mostrada mais em estudos antropológicos e demográficos do que na literatura. Da Argentina, onde uma mulher é morta a cada 30 horas, vem o vigoroso Garotas Mortas (Todavia, R$  44,90), de Selva Almada,  que parte dos assassinatos de três jovens nos anos 1980 para falar sobre a banalização da violência contra a mulher ocidental.
Sem uma bagagem jornalística, Selva Almada buscou aproximar-se, propositadamente,  do estilo conhecido como “new jornalism”, consagrado por Truman Capote. Depois de imprimir uma forma literária às entrevistas que fazia para a revista The New Yorker,  Capote quis distanciar-se do ambiente sofisticado que frequentava e sobre o qual escrevia, acompanhando o julgamento e a execução de dois homens condenados à morte pelo assassinato de uma família, no interior do Kansas. Dali sai A Sangue Frio (Companhia das Letras, R$ 69,90),  um impressionante relato com meticulosa pesquisa que apresenta objetivamente os responsáveis pela.


Como Capote, Selva Almada sai em busca dos conhecidos e dos parentes para traçar a biografia dessas mulheres, cujas mortes assombraram a adolescência da escritora. Em 1984, o corpo de Maria Luísa Quevedo, de 15 anos, encontrado num terreno baldio, tinha marcas de estrangulamento e estupro. Em 1986, Andrea Danne, de 19 anos, foi assassinada com uma punhalada no coração. Em 1988, Sarita Mundín, de 20 anos, desapareceu, depois de se encontrar com o amante, um homem casado. As três moravam em povoados do interior da Argentina e eram, como Selva Almada, de classe média baixa.

Traçando paralelos entre sua vida e a das moças mortas, Selva conduz o leitor para o universo das vítimas de feminicídio, do qual ela e outras amigas escaparam. Quando passou para a universidade, a escritora mudou-se  para a capital da província, distante 200 quilômetros de sua cidadezinha, e costumava pegar carona, sempre que queria visitar a família, nos fins de semana. Cautelosa, só entrava em carros de desconhecidos acompanhada por uma ou duas colegas, esquivando-se do constante e constrangedor assédio de muitos motoristas.

Ao apontar as semelhanças e os riscos enfrentados por mulheres apenas por serem jovens e alvo das atenções masculinas, Selva Almada denuncia a misoginia de uma América Latina que tem diversos países entre os campeões de feminicídio no Ocidente. A violência contra mulheres é um traço cultural comum nesses países, onde o “mau” comportamento da vítima justifica os abusos sofridos.  Argumento semelhante ao de outros grupos culturais que praticam mutilações genitais em meninas ou que negam direitos civis às mulheres, em países africanos e asiáticos. A maioria dos agressores priva da intimidade das vítimas, como Selva relata no epílogo, ao abordar a tentativa de estupro de uma tia por um primo, que acabou surrado pelo avô e jamais voltou a se aproximar da família.  Doloroso e cruel, Garotas mortas  se pauta na esperança do declínio da barbárie que muitos preferem ignorar. 

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