UM PRIVILÉGIO FRENTE À TRAGÉDIA

 


Acabo de fechar a página do septuagésimo quarto livro que li desde janeiro. Isso mesmo, septuagésimo quarto, 74º. É uma constatação. Falo sem me gabar. Ao contrário, até me incomoda reconhecer meu privilégio, o de poder usufruir dessa válvula de escape diante da tragédia que não para de acontecer.

Habitualmente, ultrapasso essa quantidade no fim do ano. Nos tempos sem covid, em agosto eu estaria chegando ao 50º volume. A pandemia me concedeu mais tempo para a leitura. O encarceramento compulsório não me deprimiu, afinal, moro com dois filhos, nunca estive absolutamente sozinha. Passei por diversas fases, todas divertidas: banhos de sol na janela, cuidados com as plantas, maratonas de seriados na TV. E houve a obsessão com Camilleri, que só acabou porque não existem outras edições brasileiras – além das que adquiri – das aventuras do detetive Montalbano.

Sempre fui uma leitora ávida, com poucas fases distante dos livros. Lia pouco na primeira infância dos filhos, só à noite, depois que todos adormeciam. Mesmo com uma vida social movimentada, aproveitava qualquer oportunidade para ler (no ônibus, li, pela primeira vez, inteiro, Crônica de uma morte anunciada, no metrô, gargalhava com O diário de Bridget Jones; na fila do banco, do supermercado, sempre havia algo a me distrair da monotonia da espera). Este ano, o isolamento social aumentou o volume de vendas de livros no país em quase 50%. Ou seja, estou dentro da estatística.

Entre os 74 livros lidos, pelo menos 10 foram revisões a serviço de diferentes editoras, aquela leitura que tem prazo de entrega. É o que faço para sobreviver. Acredito que nos que li sem qualquer exigência, doze eram de contos, dois de crônicas, leituras rápidas (adoro contos, e não compreendo por que realmente é tão fácil devorar histórias curtas, ainda que elas estejam salpicadas e somem até 300 páginas). A imensa maioria do que li era ficção, muitos thrillers, algumas biografias. Os poucos ensaios também me trouxeram prazer, não exigiram sacrifício. Até porque ler é prazer, jamais dever. Preciso ler como necessito da companhia dos filhos e amigos.

Peguei o hábito de anotar o que leio há onze anos, quando iniciei esta coluna de sugestões de leituras. Meu pai anotava numa cadernetinha, a letra miúda, caprichada. A lista era bem menor, sempre foi um leitor lento, normal, saudável. Já a qualidade do rol era invejável. Foi a primeira pessoa que me falou de Elias Canetti, de Svevo, de Saramago – três autores que pouco li. Papai era um leitor determinado: queria conhecer o melhor da literatura, ainda que capitulasse diante de um bom policial. Minha mãe, embora metódica, jamais registrou suas leituras, escolhidas apenas e unicamente por entusiasmo. Passou noites conversando com uma amiga sobre Cem anos de solidão, era apaixonada por Faulkner e Cora Coralina. Nunca houve competição nas leituras da família. Lia-se e vivia-se.

Isso posto, informo: a septuagésima quarta leitura foi uma decepção danada. Há exatamente um ano, li Ninfeias negras, de Michel Bussi, um thriller excepcional. Mal saiu Eu devia estar sonhando (Arqueiro, R$ 36,90), corri a comprar. Fora o título infeliz, parece que Bussi entrou na linha Harlan Coben de montagem. Não que escrevam de maneira semelhante, porém ambos gostam de confundir o leitor – o que poderia ser o básico no gênero, mas nem tanto. Desta vez, um envolvimento romântico para lá de inconsistente e inexplicável de uma aeromoça casada com um músico fracassado se sobrepõe ao mistério que os levaria a um reencontro 20 anos depois da única temporada que desfrutaram juntos. A resolução de todas as dúvidas dos personagens se resolve nas dez páginas finais.

Já experimentei essa sensação com alguns escritores, o de ter lido a obra-prima deles antes de outros escritos, menores. Alguns, no entanto, dificilmente vão superar o que já criaram, outros têm uma produção uniforme, bem estruturada. Para conferir, vou encomendar um outro antigo romance de Bussi. Depois, dou o veredito.

Esta coluna é para meu saudoso Agador, o gatinho do Leme que entrou nas nossas vidas há 14 anos e partiu duas semanas atrás. Adorava um livrinho e, oferecido que só, se houver um Paraíso, certamente deve estar pulando do colo de Hemingway para o de Burroughs, para o de Patricia Highsmith, e, claro, para o de Elliot. 






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