A MELANCOLIA EXISTENCIAL DO VERÃO

 


Desde a pandemia, as estações se mesclaram, meses, feriados, datas perderam significado comemorativo, marcas se apagaram. Mas o calor tropical não permite que esqueçamos o verão, embora as leituras para tornar a estação mais agradável sejam um hábito que eu cultivo e cumpro, apesar desse descompasso com o tempo experimentado atualmente. Em criança, nas férias, eu lia policiais – a vida de filha única em apartamento de cidade grande não tem graça alguma mesmo. Adulta, gosto de romances que falem em férias, biografias, contos e novelas. Leituras que me fazem esquecer da tristeza do noticiário, repleto de tragédias recorrentes, como a de Petrópolis, causadas pela ausência sistemática do Estado de onde deveria manter obrigatória presença.


Estreia da jornalista e ex-vice-presidente do núcleo de séries dramáticas da HBO Miranda Cowley Heller na literatura, O palácio de papel (Intrínseca, R$ 63,90) é uma casa de veraneio em Cape Cod, onde a família de Elle se reúne nas férias. É lá que ela recorda infância e juventude, e precisa decidir se continuará num casamento feliz, mas sem grandes emoções, ou se larga o marido pelo melhor amigo, com quem finalmente se envolve sexualmente, na maturidade. Não faltam relacionamentos – muito – disfuncionais na família de Elle, que gosta da rotina tranquila, embora esteja sempre disposta a se deixar arrebatar por paixões.

Não faltaram turbilhões na vida familiar da atriz Demi Moore. A família se mudava constantemente, dependendo do emprego dos pais, que se separavam com frequência. Na infância, foi bastante doentia. O pai suicidou-se quando ela tinha 18 anos, a mãe era alcoólatra. A própria Demi se tratou da dependência química aos 21 anos, quando filmava O primeiro ano do resto de nossas vidas e namorava o ator Emilio Estevez. Já havia sido casada com um namorado da adolescência e não dependia da família para se sustentar. A profissão lhe ofereceu a estabilidade que os pais nunca tiveram. Teve três filhas com o segundo marido, Bruce Willis, perdeu um bebê do terceiro companheiro, Ashton Kutcher. Adulta, descobriu que seu pai biológico era o primeiro marido da mãe. E ainda é incrivelmente linda e bem-sucedida, mas não trata de sua beleza nem de seu tino empresarial em Livro aberto (Altalife, R$ 55,90), uma autobiografia que expurga um passado doloroso com relatos que parecem bastante genuínos.


Isto não é um romance (Nova Fronteira, R$ 44,90), de Cunha de Leiradella, traz Portugal dos tempos salazaristas até a atualidade como pano de fundo de uma bela história de amor de um homem solitário por seus animais, o gato Tovarich, e Minha, um pássaro fêmea que cai na casa do recluso, com a asa machucada. Vivendo da renda deixada pelos pais, um casal que prima pela brutalidade no trato com o filho, ele recorda as oportunidades perdidas de modificar sua vida, abrindo-se para amizades e namoros, num volume ricamente ilustrado com imagens que lembram a azulejaria lusa. Uma novela que combina perfeitamente com a intensidade e a melancolia da guitarra portuguesa dedilhada com maestria pelo protagonista. Esse personagem esquisitão está amalgamado ao cenário de grandes metrópoles ou de acanhados lugarejos, sempre destoando da exuberância dos que se agrupam para enfrentar o absurdo da existência, como tão bem descreve Albert Camus em O estrangeiro, referência citada por Leiradella para o comportamento apático do tímido solitário.

(fevereiro 2022)



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