AS HERDEIRAS DAS BRUXAS

 


Na biblioteca de meus pais, organizada por minha mãe, mulheres escritoras tinham sua própria estante, ou melhor, algumas prateleiras. O máximo de proximidade com os homens estava nos livros de Simone de Beauvoir enfileirados ao lado da obra de Sartre. Era com Simone que as mulheres iniciavam seu nicho – uma bela homenagem à quem estudou as mulheres e deu um novo significado às relações amorosas.

Quase cinco décadas de leituras posteriores não tiraram meu encantamento pelas conclusões de Simone sobre a opressão da mulher ocidental que, mesmo chefiando família, trabalhando duro ao lado de homens, disputando cargos e sustentando os filhos, continua vítima de violência desmedida apenas por seu gênero. Explicar aos homens a perene sensação de insegurança que atormenta as mulheres, os fantasmas que assombram a todas fica mais fácil com a leitura de Vista Chinesa (Todavia, R$ 32,90), um hipnótico romance ficcional de Tatiana Salem Levy, baseado no estupro sofrido por uma amiga na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro. A protagonista é uma profissional liberal que decide correr pela Floresta um pouco antes do entardecer. Sob a mira de um revólver, é violentada por um homem que usa luvas. Seu périplo para reconhecer o culpado em frequentes idas à delegacia, o pavor que passa a dominar uma vida até então protegida pelas circunstâncias étnicas e sociais são descritos quase jornalisticamente, sem concessão à compaixão que provoca qualquer vítima da barbárie inexplicável.


A brutalidade de que se ouve falar, mas não se experimenta, está em Antes da liberdade (Companhia das Letras, R$ 18,90), de Julia Alvarez, que se inspirou na trajetória de sua própria família, na República Dominicana, nos anos 1950, antes de fugirem para os Estados Unidos por serem opositores do regime ditatorial de Rafael Trujillo. A menina Anita descobre o preconceito contra as crianças locais no colégio de classe média alta que frequenta, onde os filhos de diplomatas, geralmente louros de olhos claros, são escalados para o papel de peregrinos do Mayflower, no Dia de Ação de Graças, enquanto os alunos “moreninhos” interpretam indígenas (numa festa sem qualquer significado para os nativos do país). A perseguição política é percebida pela menina, que tem o pai e um tio mortos por suas posições antes de ser obrigada a emigrar definitivamente, como aconteceu com a escritora.

Publicado em 1971, Uma mulher estranha (Tabla, R$ 62), romance de estreia da escritora Leylâ Erbil (1931-2013), chega somente agora ao Brasil, discutindo a desigualdade de gênero na sociedade da Turquia através do olhar de diversos personagens multifacetados como na vida real: a jovem socialista Nermin, sua mãe, a conservadora Nurye e o pai, que, agonizando, discorre sobre as raízes históricas de sua cultura. A universitária intelectualizada e romântica amadurece ainda se rebelando contra a tradição de seu país, mas enquadrada no sistema de privilégios reservado a quem teve alguma educação acadêmica.

Outra escritora a ter sua primeira publicação no Brasil é a francesa Valérie Perrin, com Água fresca para as flores (Intrínseca, R$ 69,90), o livro mais vendido na Itália em 2020. Fotógrafa e corroteirista de alguns filmes de seu companheiro, cineasta Claude Lelouch, Valérie apresenta diversas histórias entrelaçadas por Violette Toussaint, zeladora em um pequeno cemitério de uma cidade no interior da França. Aos 50 anos, Violette redescobre a vida nos rituais de despedida que discretamente acompanha, esbanjando a doçura típica da sabedoria das herdeiras das bruxas que o conformismo não conseguiu queimar.


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