ENCONTROS EDIPIANOS AO LONGO DA COVID

 


A Covid paira sobre quem já foi contaminado e os que escaparam até agora dela. Premiada com a terceira infestação, convalesço, mal conseguindo ler. Desta vez, a doença me alienou totalmente do cotidiano. Trabalho e prazeres deram lugar ao sono constante, uma modorra da qual despertei para leituras breves e ainda não concluídas.

Consegui terminar O lugar (Fósforo, R$ 39,90), de Annie Erneaux, atual queridinha dos meios intelectualizados brasileiros, com um atraso de quarenta anos. Com a chamada ‘autosociobiografia’ de seu pai, ela traça um panorama do interior da França no pós-guerra e do processo estabelecido pela família de classe trabalhadora que enxerga na graduação da filha como professora o caminho para fora da realidade de sacrifícios laborais por uma vida inteira. O afastamento dessa filha dos pais, que administram um café em cidade pequena, decorre de sua evolução intelectual que projeta um olhar distanciado sobre as memórias, num exercício quase antropológico de revisão das memórias do grupo familiar. A contenção de sentimentos é mantida por todo o texto, como se a frieza explícita legitimasse um olhar sem apegos de afetividade, algo reservado a quem tivesse a mesma visão de mundo que a autora.

O artificialismo da rejeição amorosa pode até contribuir para fazer do que seria um retrato isento uma peça ficcional, como muitos acreditam ser característica de qualquer biografia. O texto permite várias interpretações. O mal-estar perante aquela família inadequada para a autora, lembra um ressentimento de suas raízes mostrado por Marguerite Duras em O amante (Tusquets, R$ 19,90), a ficção autobiográfica lançada em 1984, um ano depois de Ernaux publicar O lugar, na França. Enquanto a protagonista de Duras tem no amante chinês rico a única possibilidade de ascensão financeira da família francesa que vive no Vietnã e cultiva o esnobismo racista do colonizador, embora estejam completamente falidos, a rejeição de Ernaux ao estilo de vida dos pais é uma resposta ao anseio deles, que esperam da filha a distinção conferida a quem alcança a burguesia por mérito próprio. A leitura de Ernaux também guarda semelhança com Caderno de memórias coloniais (Todavia, RS 19,90), de Isabela Figueiredo, que precisou reestruturar sua nacionalidade na adolescência, quando a família teve de deixar Moçambique, onde sempre morou, para retornar a Portugal. Se em Duras não existe figura paterna, mas uma mãe débil que prefere prostituir a filha a perder sua distinção na sociedade de ‘inferiores’ onde pode reinar aristocrática, tanto Isabela Figueiredo quanto Annie Erneaux dispõem do pai latino, dominador e centro do núcleo familiar.

É um pai ausente que movimenta a trama do thriller A última coisa que ele me falou (Intrínseca, R$ 49,90), de Laura Dave. Casada há dois anos, Hanna recebe um bilhete do marido, pedindo que proteja sua filha Bailey. Procurada por agentes do FBI depois que o marido desaparece, suspeito de fraude financeira, Hanna precisa cuidar de Bailey, a rebelde enteada adolescente, que guarda uma bolsa com milhares de dólares deixada pelo pai. Sem qualquer pretensão exceto divertir, seguindo a fórmula mais empregada pelos livros de mistério do momento, o das descobertas que demolem a certeza do protagonista a cada capítulo, a história flui bem e já terá adaptação para série televisiva.


Comentários

Postagens mais visitadas