A COR DO FEMINISMO

 


Desde as primeiras linhas de Contra o feminismo branco (Intrínseca, R$ 42,90), está claro que a advogada paquistanesa Rafia Zakaria quer incomodar os leitores ocidentais, principalmente os do Hemisfério Norte. Em momento algum ela baixa a guarda em relação aos benefícios que o feminismo trouxe para as mulheres. E em sua concepção, não existe uma militância feminina universal, mas apenas uma que é generalizadora e levada a sério, embora seja apenas outra faceta do colonialismo que dominou o planeta com sua religião monoteísta, o conceito do branco salvador dos selvagens e a pregação progressista que desrespeita culturas.

E, sim, ela está correta.

No primeiros capítulos, Rafia traça uma cronologia do movimento feminista no Ocidente desde o século XIX, capitaneado por inglesas e norte-americanas. O distanciamento histórico ainda permite ao leitor ocidental atribuir boa parte da argumentação da autora, que vive nos Estados Unidos, ao ressentimento do expatriado. Porém, quando ela passa a descrever projetos em prol de mulheres de países pobres, há uma mudança real na visão de quem lê. Não é simplesmente o questionamento do “lugar de fala”, tão em voga, mas verificar o quanto esses programas consideram as mulheres de maneira estereotipada, vinculando a todas os anseios de quem vive em metrópoles, obtendo autonomia pelo emprego remunerado. Segundo Rafia Zakaria, mulheres indianas da área rural, no início do século, se viam como trabalhadoras, “mesmo sem fazer parte da economia assalariada”, que ofereceria a elas empregos “servis e fisicamente exaustivos” na construção civil ou na agricultura.

Entre os casos que ilustram e a falta de noção dos ocidentais sobre a qualidade de vida de outros povos está num projeto de 2015 da Fundação Gates, de doar 100 mil galinhas a mulheres em alguns dos países mais pobres do mundo. Pelo projeto, cada mulher que tivesse cinco galinhas poderia ganhar mil dólares por ano com a venda de ovos, usar o lucro para comprar mais galinhas até ter o suficiente para começar seu próprio negócio. Foi um fiasco. Testes em Moçambique comprovaram o faturamento de cada beneficiada chegava, no máximo, a 100 dólares por ano, pois os produtores em larga escala produziam e vendiam ovos mais baratos.

Outro fracasso financiado em 2001 pela Usaid, a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional, deveria implantar no Afeganistão um programa de qualificação para 75 mil mulheres afegãs, que seriam incentivadas a liderarem a recuperação política do país. Apesar da generosa verba de 280 milhões de dólares – a maior parte, destinada a custos administrativos e pagamento de empreiteiros norte-americanos, segundo o The New York Times –, apenas 55 mulheres foram efetivamente atingidas pelo programa, embora seus promotores mascarassem métricas a fim de atestar um sucesso inexistente.

Esses projetos são alguns dos diversos citados por Rafia Zakaria, que critica duramente a indústria da ajuda humanitária, pela qual “filantropos brancos e ocidentais doam dinheiro (..) para a educação das meninas de Bangladesh (...), mas não estão dispostos a renunciar às roupas de “fast fashion” (...)” cuja produção é baseada na exploração de mulheres de países pobres. A caridade camufla a cumplicidade com o reforço das hierarquias raciais globais, diz Rafia, que não poupa sequer as pioneiras da luta pelos direitos femininos, como Simone de Beauvoir, por considerar “a história da mulher no Oriente, na Índia e na China tem estado sob o efeito de uma longa e imutável escravidão”.

A alentada pesquisa de Rafia Zakaria demole cada princípio do chamado feminismo branco com estatísticas e observações bem urdidas. A exclusão das mulheres de todas as etnias que não a branca do conceito de feminismo não se deu de forma direta. Seu reflexo é perceptível na produção cultural de massa, como na série Sex and the city, que, para Rafia, fortalece a crença das feministas brancas de serem as descobridoras do prazer sexual feminino e de seu potencial libertador – ignorando, talvez, que o Kama Sutra vem da Índia.

Apesar dos ataques à Simone de Beauvoir, a pensadora francesa permanece no cânone do feminismo mundial, principalmente em seu país devido às observações sobre o comportamento da sociedade que conheceu. Em O segundo sexo (Nova Fronteira, R$ 107,00), Beauvoir dizia que o “mais medíocre dos homens acredita que é um semideus perto de uma mulher”, mote invocado pela ativista francesa Pauline Harmangé em Eu odeio os homens – Um desabafo (Rosa dos Tempos, R$ 27,90). Um funcionário do Ministério da Igualdade de Gênero francês ameaçou processar criminalmente os editores do livro, um best-seller internacional que discute a masculinidade tóxica diante do feminicídio, do assédio sexual e a passividade masculina diante das violência contra a mulher.

Novembro 2021


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