O fascinante desespero dos privilegiados

 Existe gênero no fundo da alma de cada personagem? Definir alguém por gênero induz a percepção dos sentimentos experimentados pelo outro? Criogenia de D. – ou manifesto pelos prazeres perdidos (Mondrongo, R$    45), de Leonardo Valente, não apresenta questionamentos ao leitor, que sente a urgência de uma reflexão própria a cada desabafo de D., que tem em  Anna Karenina, de Tolstoi, e em Madame Bovary, de Flaubert, referências múltiplas na vivência, na ficção e nas paixões.

Desvendar o gênero de D., um ser angustiado, exuberante e em perpétua análise de sua inquietude, não importa dentro dessa narrativa fragmentada, ora poética em prosa, ora prosa em poesia. O cuidado em iniciar cada trecho ou frase com letras minúsculas cria um suspense visual: D. faz o inventário de sua trajetória, recorda a rotina do morador da metrópole, que precisa ir à academia de ginástica antes de se dirigir ao local do trabalho, num tempo pré-pandemia de covid.

A forma é rompida não apenas como enredo, mas na construção do personagem de classe média urbana  contemporânea, intelectual que exerce a crítica da gourmetização dos costumes, comentando, ácido, que azeite na água para cozinhar espaguete “é pós-verdade  de quem acha que entende de cozinha”. Representante da geração que teve empregada na “casa dos pais” para todo o serviço doméstico, D. revela sua origem “protegida” ao comentar a primeira experiência de cozinhar feijão: “tinha medo da panela de pressão. pânico, na verdade. considero o ato de cozinhar feijão o gesto final no processo de independência pessoal (…) durante toda a vida,  só comi feijão cozido por outros”.

Apesar do prazer em cozinhar, a obrigação de preparar alimentos diariamente é tediosa. Enquanto descreve a mistura de temperos requintados e o congelamento de refeições, D. mescla o desejo de manter  a casa acolhedora e arrumada e o desprezo por tal tarefa, que almeja destinar a alguém contratado. O medo da solidão, acredita, “pode ser resolvido” com um ambiente impecavelmente limpo e organizado: “talvez precise mais de uma empregada ou empregado do que de um marido. melhor ainda se a tal empregada ou empregado gostar de literatura e de boa gastronomia. uma vida confortável me dispensa do amor romântico”.

O conforto da classe social privilegiada, no entanto, não contribuiu para transformar em relações proveitosas os diversos ex-casamentos, que D. apresenta identificando-se tanto no feminino como no masculino sem temer confundir quem lê suas confidências: “sou portadora da síndrome da imunodeficiência afetiva, contraí de meu segundo marido.  ele não tem a doença, mas tem o vírus, já eu sou mais fraco”.  Se D. recusa definição em gênero, não esconde parafilias, descritas com realismo que encabulam o personagem, mas que podem expressar seu desânimo diante da resistência de uma sociedade patriarcal à qual precisa se submeter, sendo homem ou mulher. A lembrança de servir aos maridos, do estado de anuência e submissão constantes justificariam o isolamento e o desejo de baixar a temperatura de uma vida de frequente dedicação ao outro. D. se transmuta a partir do desejo do outro, vítima do adestramento, desde a infância, a se deslocar sobre trilhos e a jamais sair de cima deles, por determinação do pai.

Nesse exercício literário fascinante, o jornalista Leonardo Valente, professor universitário nascido em Niterói, aborda mais do que as oscilações de gênero ao trazer as dúvidas filosóficas de uma sociedade pautada pela desigualdade.  criogenia de D. expõe uma faceta do brasileiro que nem percebe a riqueza a seu redor, retratando nossa época.

publicado em 22/5/2021

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