Era uma vez no cinema

 Difícil acreditar que Era uma vez em Hollywood (Intrínseca, R$ 49,90), o livro do cineasta Quentin Tarantino, tenha tanto sucesso quanto o filme do mesmo ano, que rendeu ao diretor baseado em seu filme que deu um Oscar de melhor ator coadjuvante a Brad Pitt, além de outro prêmio da Academia por direção de arte. Não se trata de um roteiro, mas de uma apaixonada reconstituição da Los Angeles de fins da década de 1960 e início dos anos 1970, recordada com carinho, humor e muita devoção pela criação cinematográfica.







Como bom nerd, Tarantino consegue equalizar o entusiasmo pelo cinema com o fascínio pelas produções televisivas que povoaram sua infância. Cinéfilo de carteirinha, fala de um período em que Hollywood começava a buscar novos caminhos para chegar ao público que abandonava as telonas pela TV. Levaria algum tempo ainda até a explosão de Steven Spielberg e George Lucas garantir que o cinema atravessasse o milênio. Tarantino situa sua história na época em que conceitos sociais eram chacoalhados pela cultura hippie e as múltiplas seitas de Nova Era que se estabeleceram na Califórnia, quando a meca do cinema vivia uma crise existencial refletida em produções de qualidade duvidosa, já sem contar com astros como John Wayne, James Stewart, Henry Fonda ou Glenn Ford. Mais jovem que esses medalhões, o ator Rick Dalton (no filme, Leonardo DiCaprio) só quer sobreviver, fazendo participações especiais como vilão especialmente convidado em séries de faroeste, nas quais encaixa, invariavelmente, seu dublê, o bonitão – conforme enfatizado por Tarantino em diversos trechos ­– Cliff Booth (papel de Brad Pitt), que, no livro, se revela um verdadeiro cinéfilo, admirador de Akira Kurosawa e de diretores europeus, com exceção de François Truffaut.

Se no filme muitos astros daquela época passam despercebidos, no livro, Tarantino desenvolve diálogos e encontros de Dalton e Cliff com atores como Aldo Ray (que o diretor já homenageara em Bastardos Inglórios, batizando o protagonista, vivido por Pitt, de Aldo Reine) e James Stacy, que estrelou o seriado Lancer, no qual Dalton aparece como um pistoleiro perigoso. Embora aborde o alcoolismo de Ray, que afundou sua própria carreira, Tarantino não fala sobre o dramático futuro de Stacy depois de sofrer um acidente automobilístico, no qual perdeu uma perna e um braço.

Fã confesso da desprezada literatura violenta de quinta categoria, a chamada pulp fiction – não por acaso o título de um de seus mais celebrados filmes -, Quentin Tarantino desfia conhecimento cinematográfico sem a ostentação de alguns eruditos. Perito em diálogos, mostra intimidade absoluta com descrições narrativas. Episódios do filme surgem, complementando ações que estruturam melhor os personagens, embora indique, como num roteiro, cada movimento de qualquer um que esteja “em cena”. A admirável habilidade em mesclar ficção com dados biográficos em diálogos totalmente imaginários é típica do roteirista que não tem pruridos em modificar a realidade, transformando tragédias em farsa. Serve também para esclarecer como um dublê conseguiria derrubar – e machucar – o ainda não tão famoso lutador Bruce Lee fora de cena. A apoteótica e sanguinolenta cena final do filme é apenas mencionada num telefonema, sem tratar especificamente dos integrantes da família Mason ou do destino de Sharon Tate e Roman Polanski, personagens ativos na narrativa, assim como diversos artistas maiores ou menores da época.

A edição brasileira segue o formato de bolso, determinado pelo autor para o lançamento internacional, como qualquer publicação trash, e com preço correspondente ao cobrado nos Estados Unidos, onde custava 9,90 dólares. Tarantino, que vem há anos anunciando sua aposentadoria como cineasta, pretende investir na carreira literária. O próximo livro já tem título – Cinema Speculation – e vai analisar a produção cinematográfica dos anos 1970. Quem gosta de cinema já agradece.




Comentários

Postagens mais visitadas