Folia literária

Com minha biblioteca quase toda embalada, mas ainda sem endereço definido e com pelo menos vinte dias de espera antes da mudança, bateu aquele pavor de dependente químico em risco de ficar sem sua droga. Com tantos livros guardados, separei alguns para não me privar nesta fase de transição. Busquei aqueles que passaram por uma breve folheada, mas que guardei para ler num momento mais oportuno. Como este Carnaval. 
Há mais de um mês estico ao máximo a leitura de A fantástica vida breve de Oscar Wao (Record, R$ 52,90), que rendeu ao dominicano Junot Diaz o Pulitzer em 2008.  Através de uma família que emigra da República Dominicana para os Estados Unidos, Diaz conta a história recente de seu país com imensas notas de pé de página mordazes, apresentando personagens que dominaram a ilha nas décadas de 1940 até 1990. Está lá o ditador Rafael Trujillo, seu ex-genro, o playboy Porfírio Rubirosa, as irmãs Mirabal (ativistas assassinadas pelo serviço secreto de Trujillo) e figuras, fictícias ou não, que gravitam em torno do poder. Além de uma apurada reconstituição de épocas diversas, o livro evidencia a semelhança do regime ditatorial comandado por Trujillo com a situação em outras repúblicas latino-americanas, de profundas desigualdades sociais. 

Se Junot Diaz incita o leitor a fazer render a apreciação de seu romance, o americano Garrard Conley poderia deixar de lado as minúcias de suas memórias e reduzir em algumas páginas Boy Erased – Uma
verdade anulada (Intrínseca, R$ 49,90). Filho de um pastor batista, criado na região conhecida como O Cinturão da Bíblia, nos Estados Unidos, aos 19 anos Garrard, na tentativa de não perder o convívio com a família, voluntariamente se submeteu a um programa de reorientação sexual de uma organização fundamentalista cristã. O tratamento não surtiu efeito. Apesar do rígido monitoramento e da pressão psicológica sobre todos os inscritos, Conley foi estuprado por outro interno. 

Há cerca de 22 anos, a americana Eve Ensler encenou uma peça que pretendia quebrar tabus e discutir a opressão contra mulheres falando sobre uma parte do corpo feminino raramente mencionada  fora dos ambientes médicos, humorísticos ou pornográficos. Os monólogos da vagina (Globo Livros, R$ 39,90), que ganharam edição comemorativa em 2018, com novos textos analisando o período entre seu lançamento e os dias de hoje,  rodaram o mundo para discutir o uso da palavra e o cotidiano das mulheres reduzidas às funções de reprodutora, cuidadora e objeto do prazer alheio. Sexualidade, violência (incluindo no parto), a cultura que determina a subserviência feminina são alguns dos temas levantados por Eve Ensler num livro que permanece dolorosamente atual. 

A identidade feminina sob diversos ângulos está em Doce inimiga minha (Alfaguara, R$  32,90), que reúne 21 contos da chilena Marcela Serrano. Vulneráveis à guerra, à violência, ao temor de não superar o envelhecimento físico e perder a aparência que garante a atenção masculina, as personagens fictícias, mas que parecem retiradas do noticiário, estão no Chile, na Bósnia, na Itália, na Croácia e no México, muitas vezes abrindo mão de princípios para garantir a sua segurança e a da família. Uma dolorosa similaridade surge nas histórias, embora cada texto curto seja situado em cenários que contribuem para fomentar os dramas vividos por cada mulher.
Evoé, Momo!

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