A história envergonhada
Em 1986, a Argentina ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro com A História Oficial. Além de apresentar ao mundo Norma Aleandro, premiada em Cannes por interpretar a mulher que investiga se sua filha adotiva é um dos muitos bebês roubados de presas políticas grávidas, o filme aponta uma realidade comum na história recente da América Latina. Essa América, que insiste em se situar econômica, cultural e socialmente pelos padrões eurocêntricos, moldou-se de acordo com o que visavam os reis católicos, Isabel de Castela e Fernando de Aragão, patrocinadores da expedição do genovês Cristovão Colombo para o Novo Mundo.
A tática de unir grupos com interesses diferentes em torno de uma causa foi invocada mais de uma vez por Isabel e Fernando. A biografia Isabel de Castela – A primeira grande rainha da Europa (Rocco, R$ 69,90), do historiador inglês Giles Tremlett, exalta a importância da mulher que definiu os contornos do mapa espanhol, tendo expulsado os árabes da Península Ibérica em 1492, depois de quase oito séculos de permanência moura na região, e iniciado a expansão para o Novo Mundo. Os métodos de dominação dos reis europeus permanecem em prática até hoje. Em nome de moral e bons costumes, mata-se, espolia-se, destrói-se. A referência europeia foi incorporada pelos habitantes das Américas, que não se veem como nativos, mas como descendentes dos invasores brancos. As marcas dessa tradição estão na literatura latino-americana contemporânea. O romance autobiográfico O espírito dos meus pais continua a subir na chuva(Todavia, R$ 44,90), do argentino Patricio Pron, transforma uma verificação nos guardados da família – recortes de jornais, cartas, tudo o que se tranca em gavetas e caixas, em nome das memórias – na reflexão sobre os traumas deixados pela ditadura argentina. As recordações da infância também estão em Formas de voltar para casa (Cosac Naify, R$ 46,90), do chileno Alejandro Zambra, que cresceu durante a ditadura de Pinochet, quando sua família preferia fingir ignorar o que acontecia no país – talvez por concordar com o regime ou talvez apenas em nome da sobrevivência. Virar o rosto para as atrocidades é a prática de alguns personagens de A noite da espera (Companhia das Letras, R$ 39,90), de Milton Hatoum, romance situado na Brasília dos anos 1970, quando a repressão aos movimentos de crítica ao governo militar atinge críticos do regime e quem jamais se envolveu em política.
Às vésperas de um controvertido processo eleitoral, Aqueles que queimam livros (Âyinê, R$ 19), do crítico francês George Steiner, reflete sobre a “hipocrisia liberal” que condena textos que “possam inflamar a sexualidade”, ignorando, no entanto, “o dilúvio de erotismo sádico que hoje invade as livrarias, as bancas e a internet” e, principalmente, o ciberespaço saturado de “exemplos validadores da bestialidade em relação a outros seres humanos, em relação a nós mesmos”. A repressão ao pensamento crítico é um dos primeiros cuidados do totalitarismo, em nome do zelo pela moral de tutelados. Sobreviver, algumas vezes, exige que se fechem os olhos para a queima dos livros. Mas, como em Fahrenheit 451 (Biblioteca Azul, R$ 34,90), sempre haverá quem guarde as narrativas de memória, no cérebro, onde censor algum pode chegar.
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