A inadequação sob o colonialismo


As cores – vermelho e verde – da bandeira portuguesa se mesclam a uma estampa e à fotografia de uma menina de tranças louras, carregando um cachorro no colo, o olhar sorridente num rosto cujos traços se mostram mais maduros do que infantis, na capa de Caderno de memórias coloniais (Todavia, R$ 33,90). As recordações de Isabela Figueiredo, nascida nos anos 1960, na então Lourenço Marques, hoje Maputo, em Moçambique, são assim entremeadas: falando português e crescendo entre uma população negra que servia aos brancos colonizadores, ela teve que deixar o que chamou de lar em 1975 para aprender a viver num país onde apenas na língua havia alguma referência pessoal.
A adaptação à vida fora da ex-colônia entra no livro em breves pinceladas.  Em Portugal ela compreende o que o pai queria dizer sobre serem “remediados”, um degrau acima dos pobres e alguns abaixo, na escala social. O pai, um eletricista e gerente de obras em Lourenço Marques, “tratava com os negros para que as instalações elétricas das casas onde os brancos, de primeira e de segunda, ficassem prontas a tempo e horas”. Uma tarefa fundamental para o funcionamento da cidade, diz ela, porque “era desagradável ao banco sujar as mãos, pois ‘a catinga dos pretos cheirava mal’”. O racismo é o primeiro traço cultural que ela percebe, antes mesmo da diferença entre os papeis sociais dentro da família.  Um racismo que não impedia os brancos de terem amantes negras, pois as mulheres dos colonos, incluindo a mãe da autora, “limitavam-se ao cumprimento das suas obrigações matrimoniais, sempre com sacrifício, pelo que a fornicação era dolorosa, e evitável”.

Vagarosamente, a menina que chega a adolescência, desperta para a dualidade na forma de viver de brancos e Cadernos, passa a ser abordada por desconhecidos que se reconhecem no relato, rompendo “o silêncio sobre o que muito se calou ou escondeu”, um assunto considerado delicado e não se falava fora de casa, segundo muitos dos descendentes dos “retornados” – os ex-colonos que voltaram a Portugal.
negros. Isabela Figueiredo conta que quase nasceu brasileira. O pai tentou emigrar para o Brasil, mas teve o pedido indeferido, transferindo-se para Moçambique. Jamais pensou em voltar para Portugal, o que fez quando os moçambicanos tomam o poder. O pai racista, que se sente superior aos negros que emprega e faz amizade real com alguns dos empregados, é o protagonista da temporada em Lourenço Marques. A mãe, sempre apagada, dedica-se aos afazeres de casa e ao bem-estar da família. É o pai que se lança no espaço que os portugueses pretendem transformar em terra próspera, levando o progresso para os nativos, desde que seja sob a administração colonialista.  Quando visita  Moçambique 42 anos depois de partir, Isabela reconhece o lugar, mas sente-se “estrangeira e deslocada”. Em 2009, depois do lançamento de 
Sem seguir uma ordem cronológica rígida, o livro leva o leitor a compartilha a sensação de perene inadequação percebida por Isabela desde criança. O sentimento de culpa, de gostar sinceramente dos que propagam práticas racistas, de em algum momento se ver entre duas correntes antagônicas,  é bastante semelhante ao que se experimenta entre os brasileiros. Um incômodo que acompanha qualquer país onde a escravidão fez parte de sua formação.

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