A História escolhida
Um exercício literário que toca o fundo da alma, Múltipla escolha (Tusquets, R$ 31,90), do chileno Alejandro Zambra, segue a proposta de diversos escritores, entre eles o argentino Julio Cortázar, de romper com as estruturas encadeadas da narrativa. E, como Cortazar, mostra versões possíveis de um relato a partir de diferentes narradores ou de fragmentos desarrumados sem cronologia rígida. Inspirado pelo vestibular aplicado no Chile de entre 1966 e 2002, Zambra montou “testes” com opção de respostas escolhidas pelo leitor ou definidas pelo autor, além de textos para análise do “vestibulando”, que mesclam o cotidiano da classe média com as mudanças sociopolíticas em seu país, onde o conservadorismo se mantém forte na parcela mais velha da população abastada (“É verdade que ele achava repugnante quem era bicha, (…) que não gostava dos mapuche, mas é que agora é preciso respeitar todo mundo. Que merda, não se pode falar nada, tudo é ofensivo, todo mundo reclama”).
Lançado em 2014 (mas apenas em 2017, no Brasil), o livro se baseou especificamente na Prova de Aptidão Verbal que Zambra fez em 1993, trazendo questões gramaticais, semânticas e de história. Provocações poéticas ou pequenos contos se formam em resposta a enunciados que pedem para assinalar palavras que destoem de um substantivo ou verbo apresentados (“Silêncio – a)mutismo; b) afonia; c) sigilo; d) omissão; e) covardia”), definir qual ordem de frases constitui o melhor roteiro ou plano de redação (“Sua casa – 1) Pertence a um banco, mas você prefere pensar que é sua. 2) Se tudo correr bem, vai terminar de pagá-la em 2033. 3) Mora nela há onze anos. Primeiro com uma família, depois com alguns fantasmas que também já se foram. 4) Não gosta do bairro; não há praças por perto, o ar é poluído. 5) Mas ama a casa, nunca vai abandoná-la”) ou eliminar frases que não tragam informações relevantes para completar as outras (“1) O toque de recolher consiste na proibição de circular livremente pelas ruas de determinado território. 2) Costuma ser decretado em tempos de guerra ou de revoltas populares. 3) No Chile, a ditadura o impôs de 11 de setembro de 1973 até 2 de janeiro de 1987. 4) Numa noite de verão, meu pai saiu para caminhar sem rumo certo. Acabou ficando tarde, teve de dormir na casa de uma amiga. 5) Fizeram amor, ela engravidou, eu nasci”).
Ainda seguindo o modelo da prova, os textos a serem interpretados pelos estudantes abordam questões morais diante das transformações da sociedade durante e depois da ditadura Pinochet. Será ético passar de ano colando nas provas finais de uma escola que prepara os alunos “para um mundo onde todas as pessoas ferram umas com as outras”, indaga um professor. Um casal precisa forjar motivos para a anulação de um casamento, pois o Chile foi o penúltimo país do mundo a legalizar o divórcio, em 2004. O terceiro texto é a pungente carta de um pai ao filho que completa 18 anos. Um conto primoroso, que retrata a geração nascida em meados dos anos 1970, defensora da liberdade perene para usufruir os prazeres da vida sem se prender às responsabilidades de uma família: “Queríamos ser filhos sem filhos, que era a maneira de ser filhos para sempre e desse modo culpar nossos pais por tudo”. No universo urbano contemporâneo de Alejandro Zambra, as narrativas escondidas sob formas pouco usuais de se contar histórias tocam na emoção, sem perder o foco na realidade.
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