Contra o obscurantismo e a violência que dele decorre

 Já se foi o tempo em que a literatura “feminina” se baseava apenas na busca de um príncipe encantado. Embora boa parte dos romances “rosa” ainda tenham a protagonista atrás de um homem para chamar de seu, há temas de afirmação política percorrendo transversalmente  tramas em que as figuras masculinas tornam-se acessórios. Hoje, mais que a descoberta do amor, as jovens são chamadas a lutar contra o obscurantismo, denunciar o perigo iminente do estupro, discutir pautas igualitárias e questões de gênero.

Uma das características dessas novas peças “para meninas” é exatamente a ausência de modelos masculinos próximos. As personagens ou têm pais completamente submissos às mães ou são órfãs. O macho alfa com todas as peculiaridades tradicionais é papel dos vilões. É assim em “Moxie – quando as garotas vão à luta” (Verus, R$  49,90), de Jennifer Mathieu, que acentua as diferenças na convivência das tribos do Ensino Médio numa escola norte-americana. Estão lá as chefes de torcida, os atletas,  os latinos, os negros e os nerds. Entre eles transita Viv, criada pela mãe viúva, uma enfermeira que, no passado, identificou-se com o movimento Riot Grlll e só ouve rocks de bandas encabeçadas por mulheres. Cordata e boa aluna, Viv desperta para o feminismo ao se insurgir contra os vexames aos quais são submetidas colegas que vestem “roupas provocantes”, enquanto os rapazes podem usar camisas com dizeres misóginos e grosseiros. Viv cria um fanzine, que faz sucesso entre as garotas da escola, por reclamar do assédio, do bullying e da tentativa de estupro a uma das meninas mais populares no colégio.

No contato com uma colega que vem de uma escola em cidade grande, Viv ouve falar em Roxane Gay, uma das mais proeminentes escritoras feministas dos EUA, filha de imigrantes haitianos, que atribui seu excesso de peso ao estupro sofrido quando tinha doze anos, por um grupo de colegas da mesma faixa etária. Roxane conviveu secretamente com seu trauma e, em consequência, quis anular sua visibilidade chegando a pesar mais de 200 quilos. Nos primeiros capítulos da autobiografia “Fome” (Globolivros, R$ 38,90), ela adverte: “A história do meu corpo não é uma história de triunfo. Esta não é uma autobiografia sobre perda de peso. (…) Este é um livro sobre desaparecer e estar perdida, e querer muito ser vista e compreendida”. Além de associar ao estupro ao apetite desmedido, Roxane trata também da rejeição a quem não se enquadra nos padrões de beleza. Sempre que emagrecia, conta, era recebida com carinho por colegas de escola e universidade. Ao engordar, sentia-se deixada à parte.

Para a jornalista e historiadora Rebecca Solnit, a violência não tem classe social, nacionalidade ou faixa etária, mas tem gênero. Em “Os homens explicam tudo para mim” (Cultrix, R$ 21,76), ela, que recusa a autoria do termo mansplaining, surgido a partir de um artigo em que se referia a esse comportamento, enumera casos de violência contra mulheres (a cada 9 segundos, uma mulher é espancada nos EUA. A ação em  “Amigas para sempre” (Arqueiro, R$   33,90), de Kristin Hannah, decorre com a chegada no bairro de Tully, filha de mãe solteira e ausente, que supera o estupro sofrido na adolescência graças ao apoio de Kate. Ainda que a narrativa esteja centrada na amizade das meninas que crescem juntas e nas escolhas permitidas a mulheres de determinadas classes sociais – enquanto Tully se torna apresentadora de TV de sucesso, Kate sacrifica a carreira profissional pela família –, o trauma pela violência está presente em todo momento do romance.

Amizade vivida e tratada de maneira um tanto mais realista está na novela As inseparáveis (Record, R$  39,90), de Simone de Beauvoir, que se inspirou na relação com sua amiga de infância Élisabeth Lacoin. Quase 70 anos depois de ser escrito, o livro chega ao Brasil, mostrando a formação intelectual da grande estudiosa das discrepâncias entre os mundos masculino e feminino que culminou em O segundo sexo (Nova Fronteira, R$  120).

——————————————–

Estudo da Secretaria da Receita Federal aponta  que as famílias brasileiras com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros não-didáticos e “a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos”.  A informação está na Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019  e conclui que a tributação de livros permitirá a utilização dessa arrecadação em “políticas focalizadas”.

Falta esclarecer se a Receita Federal considera apenas o consumo de livros didáticos como movimentador do mercado editorial, e se não cruzou dados para verificar que os estudantes provenientes de famílias com renda de até 2 salários mínimos estudam em colégios públicos, que fornecem uniformes e material escolar aos alunos.

Um dos pilares da violência é a falta de acesso ao conhecimento, que só contribui para o obscurantismo.

#nãoàtaxaçãodelivros

Comentários

Postagens mais visitadas