O que as chamas não apagam

A destruição do Museu Nacional levou o País inteiro a lamentar a negligência dos encarregados da proteção do patrimônio público. Nesses tempos de troca de acusações ferozes, cada um aponta o outro como culpado pela incúria administrativa. O desleixo, no entanto, é mais comum do que podemos imaginar. Livros em Chamas – A história da destruição sem fim das bibliotecas (José Olympio, R$ 79,90), do historiador francês Lucian X. Polastron, recorda esse hábito do ser humano – o de ver, frequentemente, sua memória se esvair em cinzas.
A guerra da Bósnia, lembra Polastron, destruiu a biblioteca da cidade de Sarajevo. A Inquisição, o nazismo, os aiatolás no Irã queimaram livros que consideravam subversivos.  Uma tocante fotografia tirada em Londres, por volta de 1940, mostra de uma biblioteca destroçada por um bombardeio. No meio dos escombros, três homens vasculham as prateleiras – e a sensação que passam é de interessados no conteúdo dos livros, não nos volumes em si. Como Jorge Luis Borges, certamente imaginavam o Paraíso como “uma espécie de biblioteca”. Já a minha ideia de inferno é a de um conto que alguém me contou ter lido num Mistério Magazine. Acidentalmente preso num abrigo subterrâneo com provisões para se alimentar ao longo de anos, um homem está feliz, pois ali montou uma biblioteca imensa. Desequilibra-se, cai e perde os óculos na queda. Ao se levantar, ouve o ruído de vidro se quebrando sob seus pés. O último parágrafo do conto descreve o homem com uma lupa na mão, tentando enxergar as linhas de uma página.
Qualquer apaixonado por livros se identifica com o pesadelo descrito nesta historieta – que tem um jeitão de ser de Ray Bradbury, mas cujo autor desconheço. É de Bradbury a mais perfeita metáfora sobre a crueldade humana em relação ao conhecimento. Em Fahrenheit 451 (Todavia, R$ 34,90), bombeiros são os encarregados de incinerar livros. Os volumes são queimados, mas as narrativas não se perdem: grupos abandonam as cidades e se dedicam a decorar, cada um, histórias que serão mantidas pela tradição oral. Um pósfácio de Bradbury  diz que ao longo de toda a vida, ele, um autodidata que afirmava dever sua formação a frequentar bibliotecas, recebia cartas de leitores sugerindo alterações em suas obras. Uma reclamação recente era que incluísse personagens representando minorias. As sugestões antigas eram a de que retirasse qualquer louvor a personagens negros. A eles, Bradbury dizia que, embora a digressão seja a alma do intelecto, não iria se curvar aos críticos ou permitir que os insultassem  com “decapitações, decepações de dedos ou esvaziamentos de pulmões” em suas criações. “Não irei gentilmente para uma prateleira, eviscerado, para me tornar um não-livro”, afirmava Bradbury, morto em 2012.
Nosso Museu Nacional guardava literatura científica preciosa, que foi perdida nas chamas. A biblioteca “pública” mais antiga do mundo, em Alexandria, no Egito, aberta no século III a.C., tinha capacidade de abrigar 500 mil papiros. Os registros históricos de seu fim são controversos. Por muito tempo se atribuiu o incêndio a Júlio Cesar, no ano de 47 a.C., mas há uma versão de que a biblioteca teria sido queimada em 642 pelo general muçulmano Amir Ibn Al-as. O diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, Alberto Manguel,  conta em A biblioteca, à noite(Companhia das Letras, R$ 59,90) que na infância reuniu, em seu quarto, sua pequena “Alexandria minúscula”, de cem volumes. Esse amor, como o dos revoltosos de Fahrenheit 451 pode deixar queimar volumes, mas manterá acesa a memória.

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